terça-feira, 6 de dezembro de 2011

O drama da pequena burguesia na poesia brasileira: o caso de Drummond

[Augusto Machado]

                                                     

A época da ofensiva socialista mundial que foi o século XX conseguiu atrair para o campo proletário muitos elementos da intelectualidade. No Brasil são diversos casos de escritores que aderiram a causa, na forma de apoio, simpatia ou até mesmo pelo filiação ao Partido.  Um exemplo notório é o caso de Drummond. Mas que fim político levaram todos eles? Quão firmes eram as suas posições progressistas? A postura cambiante da pequena burguesia se  faz presente nessa questão como veremos a seguir.

Traços de uma biografia: a construção de uma personalidade itabirana

Drummond é um dos nossos maiores expoentes da poesia contemporânea “culta”. Suas estátuas de bronze em Porto Alegre e Rio de Janeiro, além de sua ainda grande popularidade, demonstram a importância desse poeta que foi cogitado ao Nobel enquanto vivo. Conhecido pelos seus versos livres e temáticas que envolviam preocupações existenciais, marcadas sobretudo pelo espanto e quietismo, através de conflitos entre o eu lírico frágil e pequenino e o “mundo grande”, nosso poeta é querido por muitos e odiado por outros, é estudado e vulgarizado, elogiado e denunciado.

Nasceu no início do século passado, em 1902, em Itabira, cidade que possuía “Noventa por cento de ferro nas calçadas. / Oitenta por cento de ferro nas almas. (em Confidência de um itabirano, Sentimento do mundo, 1940). Drummond provém de uma família tradicional de fazendeiros, de vida confortável, e sua infância e juventude é contada nos livros Boitempo (três volumes, lançados em 68, 73 e 79). Ali percebermos a construção da subjetividade drummondiana, as memórias mais marcantes e seus mais profundos temores e segredos. Esse período de sua vida Drummond inicialmente relata com carinho, mas em seguida busca demonstrar a dor e a “tragédia” de crescer e ter que se distanciar de casa e da família, do colégio jesuíta de dura disciplina, da descoberta da sexualidade, da vida coletiva, e de outros acontecimentos da subjetividade, que, no caso de Drummond, já tomava fortes tendências pequeno burguesa, enfermiça, individualista e, por isso mesmo, dramática - como não podia ser diferente por seu meio social. 

Formou-se em Farmácia mas nunca exerceu a profissão. Foi um rapaz boêmio em Minas: sobreviveu o terror de "virar adulto" e enfim se encaixa no "mundo dos homens". Nessa época, ainda jovem, aproximou-se de círculos literários e sob a influência de Mário de Andrade lança seu primeiro livro e sua obra mais ousada esteticamente Alguma Poesia, em 1930, ano que do outro lado do mundo outro extremado poeta do modernismo, Maiakovsky, atirava em seu próprio peito.

Em 34 vai para o Rio de Janeiro, trabalhando como servidor público no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Também cronista, escrevia para jornais. Não foi de todo solitário. Casou-se e teve uma filha, que morreria cedo, e tal fato desencadearia um suicídio melancólico e quase imperceptível: para de tomar os remédios para o coração e assim a vida lhe deixa do corpo que não a desejava mais.

Entendia-se como um homem de vida pequena, de papel pequeno, escrevia para afogar suas angústias e insuficiências, num tempo tão movimentado e violento, sobretudo politicamente. O mundo de Drummond, o movimentado século XX, exigia do homem histórico muito mais que contemplação e canto, os talentos comuns de um poeta e de uma personalidade sensível, mas comprometimento, intervenção, tomada de partido. Aqui, nesse período, “não podem existir os apenas homens, estranhos à cidade. Quem verdadeiramente vive não pode deixar de ser cidadão, e partidário. Indiferença é abulia, parasitismo, covardia, não é vida.” (GRAMSCI, Os indiferentes). Esse grande chamado, de um mundo em emergência, de uma humanidade instável e em mutação, sem dúvida era a origem dos sentimentos do poeta. E também, graças ao seu ceticismo, comum de um agnóstico tristonho, o fez em muitos momentos de sua vida uma pessoa contraditória e hesitante, que por vezes rendia-se e recuava-se ao anonimato e à paralisia, apostando na não tomada de posição e no não enfrentamento, tanto por falta de forças, quanto por falta de esperança. Essa ambiguidade é vista claramente em sua relação com o marxismo/comunismo.

Travessia de Drummond pelo comunismo: a impossível identificação com o proletariado e a cooptação melancólica

De modernista "estético", nos anos 30, vai tranferindo-se gradualmente para uma poesia mais política e social. Nela, apesar da forte presença de um eu lírico rico e profundo em sua intimidade, os acontecimentos históricos tem forte destaque, ganham relevo e são objetos de preocupação e contemplação do poeta. Pode-se dizer que é o período, apesar de trágico e desesperador, de maior esperança e engajamento do poeta tímido de Itabira. Momento curto mas de grande valor artístico e político como veremos. Negá-la de todo seria apenas reforçar um obreirismo sem sentido.

Suas principais obras desse período político são do período da segunda guerra mundial, Sentimento do Mundo, de 1940, (onde ainda permanece um eu lírico mais incapaz e assombrado) e sobretudo A Rosa do Povo, de 1945. As duas obras são marcadas pela ocorrência da 2ª guerra mundial, pela ascensão e decadência do nazi-fascismo, do Estado Novo, e pela atualidade de revolução bolchvique que ameaçava tomar o mundo com sua Internacional. Aqui não se fará uma análise detida das poesias dos dois livros, somente buscaremos delinear, em meio aos medos, pessimismos e fatalismos típicos do autor, de sua classe e de sua época, a esfera de identificação do poeta com o comunismo e com o proletariado.

A atitude de Drummond nesse âmbito não muda muito: a ambiguidade permanece. Ora parece possível sua identificação e crença com a causa comunista como é visível em seu poema Nosso tempo, de A Rosa do Povo, onde diz na última estrofe, depois de analisar o caos da vida e do mundo moderno:
O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
prometa ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma floresta
um verme.

Ou nas suas glorificações à batalha contra o nazi-fascismo travada em Stalingrado em Carta a Stalingrado de mesmo livro.

Stalingrado...
Depois de Madri e de Londres, ainda há grandes cidades!
O mundo não acabou, pois que entre as ruínas
outros homens surgem, a face negra de pó e de pólvora,
e o hálito selvagem da liberdade
dilata os seus peitos, Stalingrado,
seus peitos que estalam e caem,
enquanto outros, vingadores, se elevam.
[...]

Stalingrado, quantas esperanças!
Que flores, que cristais e músicas o teu nome nos derrama!
Que felicidade brota de tuas casas!
De umas apenas resta a escada cheia de corpos;
de outras o cano de gás, a torneira, uma bacia de criança.
Não há mais livros para ler nem teatros funcionando nem trabalho nas fábricas,
todos morreram, estropiaram-se, os últimos defendem pedaços negros de parede,
mas a vida em ti é prodigiosa e pulula como insetos ao sol,
ó minha louca Stalingrado!
[…]
As cidades podem vencer, Stalingrado!
Penso na vitória das cidades, que por enquanto é apenas uma fumaça subindo do Volga.
Penso no colar de cidades, que se amarão e se defenderão contra tudo.
Em teu chão calcinado onde apodrecem cadáveres,
a grande Cidade de amanhã erguerá a sua Ordem.


Mas, ora um fatalismo voraz o consome como em Canção do Berço, de Sentimento do mundo: “Tudo acontece, menina / E não é importante, menina”. Tudo isso se passa sob um eu lírico profundo, questionador, angustiado e sobretudo pequenino, medíocre, que busca encontrar alguma forma ou caminho de colaborar com o mundo dos homens do qual se sente distante. O mundo dos homens, “mundo grande”, do qual o eu lírico teme e se sente diferente, é o mundo histórico, o mundo da urgência da ação, a vida pública, o espaço político, que parece tão grande, tão violento, mas que o chama. Diante das injustiças do mundo, o eu lírico deve esforçar-se para caminhar para o mesmo e engajar-se na busca coletiva, "de mãos dadas", de algo melhor já que o mau impera (a guerra, a fome, a ameaça fascista, a vida alienada etc.).

É nesse impasse, que reflete a própria vida do autor à época, é que a poesia de Drummond desse período se prende. Seus versos são confissões de um homem contemporâneo de seu tempo. Demonstra as angústias de uma intelectualidade progressista que sente dificuldades em assumir um posicionamento firme diante das trincheiras da luta de classes. 

Outro exemplo que clarifica bastante o desespero (e desejo) do autor diante desse impasse é o poema Operário no Mar, de Sentimento do mundo, onde questiona sua identificação com o proletariado, em meio a um sentimento contraditório quase absurdo, mas que ainda guarda uma esperança:

Na rua passa um operário. Como vai firme! Não tem blusa. No conto, no drama, no discurso político, a dor do operário está na blusa azul, de pano grosso, nas mãos grossas, nos pés enormes, nos desconfortos enormes. Esse é um homem comum, apenas mais escuro que os outros, e com uma significação estranha no corpo, que carrega desígnios e segredos. Para onde vai ele, pisando assim tão firme? Não sei. A fábrica ficou lá atrás. Adiante é só o campo, com algumas árvores, o grande anúncio de gasolina americana e os fios, os fios, os fios. O operário não lhe sobra tempo de perceber que eles levam e trazem mensagens, que contam da Rússia, do Araguaia, dos Estados Unidos. Não ouve, na Câmara dos Deputados, o líder oposicionista vociferando. Caminha no campo e apenas repara que ali corre água, que mais adiante faz calor. Para onde vai o operário? Teria vergonha de chamá-lo meu irmão. Ele sabe que não é, nunca foi meu irmão, que não nos entenderemos nunca. E me despreza... Ou talvez seja eu próprio que me despreze a seus olhos. Tenho vergonha e vontade de encará-lo: uma fascinação quase me obriga a pular a janela, a cair em frente dele, sustar-lhe a marcha, pelo menos implorar lhe que suste a marcha. Agora está caminhando no mar. Eu pensava que isso fosse privilégio de alguns santos e de navios. Mas não há nenhuma santidade no operário, e não vejo rodas nem hélices no seu corpo, aparentemente banal. Sinto que o mar se acovardou e deixou-o passar. Onde estão nossos exércitos que não impediram o milagre? Mas agora vejo que o operário está cansado e que se molhou, não muito, mas se molhou, e peixes escorrem de suas mãos. Vejo-o que se volta e me dirige um sorriso úmido. A palidez e confusão do seu rosto são a própria tarde que se decompõe. Daqui a um minuto será noite e estaremos irremediavelmente separados pelas circunstâncias atmosféricas, eu em terra firme, ele no meio do mar. Único e precário agente de ligação entre nós, seu sorriso cada vez mais frio atravessa as grandes massas líquidas, choca-se contra as formações salinas, as fortalezas da costa, as medusas, atravessa tudo e vem beijar-me o rosto, trazer-me uma esperança de compreensão. Sim, quem sabe se um dia o compreenderei? (grifos nossos)

Aqui percebemos o impulso progressista e até mesmo sincero (de fato há uma diferença irredutível entre o pequeno burguês e o proletário), mas ao mesmo tempo as limitações de classe e posição social e subjetiva do autor; o reconhecimento da causa, mas o sentir-se inútil para a mesma.

No ano de 45, Drummond resolve entrar na vida política e começa a escrever na Tribuna Popular, jornal do PCB, e ingressa na mesma sigla. Nesse período outros escritores de sua geração também entraram na fileira do partido, como é o caso de Jorge Amado e Graciliano Ramos, nomes cuja obra é classificada mais fortemente como “comunista” (pelo menos em determinadas obras), onde a causa política e social aparecem de forma mais pura e menos subjetiva/individualista como na de Drummond.

Mas esse passo e avanço para o "mundo dos homens", que clamava por um posicionamento mais firme do autor, logo seria abandonado de maneira arrependida. Fica só 6 meses no Partido sai por pressão teórica e política (tendo como apse o famoso caso de suposta agressão física por parte do Partidão durante a realização de uma ata na Associação Brasileira dos Escritores) e cada vez mais caminha para o reacionarismo e a apatia política. De poeta social, vira um poeta metafísico nas décadas seguintes, pairando sobre o espírito, mesmo a história continuar o chamando: em plena ditadura civil militar no país, sua poesia nada denuncia, e sua pessoa não toma parte de nada. O homem pequenino fecha-se em sua própria casca, assombrado e descrente com o mundo exterior. Aqui o tênue laço do poeta com a causa é perdida e sua posição atrasada de pequeno burguês se torna efetiva. O fatalismo da trajédia pequeno burguesia se confirmava. A identificação com o proletariado que outrora parecia poder acontecer é enterrada de vez. 

Em uma entrevista (Entrevista de Carlos Drummond De Andrade a Luiz Fernando Emediato, publicada no Caderno 2, do jornal O Estado de S. Paulo em 15 de agosto de 1987) perto de sua morte, Drummond demonstra enfim a perda completa de seu posicionamento político do período de 40-45:

“O senhor apoiou o movimento de 64?
Drummond - Não apoiei não. Eu fui contra João Goulart, achei que a derrubada dele foi salutar. Mas uma semana depois já haviam praticado tais desmandos que não pude apoiar. Posso ter pecado por omissão por não ter denunciado logo, mas não apoiei.
O senhor já foi convidado para visitar Cuba, como outros intelectuais que lá estiveram e até escreveram livros a respeito?
Drummond - Nunca fui, não. Aliás, uma vez eu estava posto em sossego, cerca de meia-noite, e me telefonou o Chico Buarque de Holanda, pessoa que admiro muito, mas com quem não tenho nem contato. Gosto da música dele. Telefonou e disse: "Preciso conversar com você". Eu disse: "A esta hora da noite? Meu Deus, aconteceu um drama, para o Chico me procurar!" Mas disse. "Pois não, venha". Apareceu em companhia de um cidadão moreno, magro. Era já meia-noite e meia. O cidadão falou meio enrolado, era o embaixador da Nicarágua no Brasil, que tinha lido uma crônica minha no jornal e achava que eu estava mal informado sobre o país dele. Ah, tenha paciência! Eu tenho noção do que escrevo, compreendeu? Não sou partidário dos Estados Unidos, longe disso, acho a agressão à Nicarágua uma coisa estúpida. Mas não se pode negar que a Nicarágua é uma ditadura. Eles fecharam o La Prensa, onde tenho amigo, o poeta Pablo, Antonio Cuadra. E então falei para o Chico: "Tenha paciência"!
O senhor tem um poema, Favelário Nacional, em que diz que é difícil ser irmão das pessoas, ser solidário.
Drummond - Eu acho muito difícil. Fomos criados para sermos irmãos de nossos irmãos, e mesmo assim olhe lá. Somos irmãos de nossos irmãos e de nossos amigos - os demais são sócios, indiferentes ou inimigos, competidores. Se eu quiser ser irmão de um favelado eu acho que ele me cospe na cara.”

O posicionamento dos intelectuais provindos da pequena burguesia pode ser entendida concretamente com o exemplo de Drummond. O vislumbre progressista pode ser um fugaz momento, podendo dar lugar a um reacionarismo e conservadorismo dos mais explícitos. Lidar com esses "vai e vens" da pequena burguesia desde sempre foi um problema enfrentado pelos trabalhadores e revolucionários na sua luta. Um remédio não há: não se pode afirmar muita coisa sem avaliar numa determinada conjuntura o comportamento e papel de setores da pequena burguesia e da intelectualidade. De modo geral, esforço não sectário é o de conquistar os setores progressistas para a causa. Mas, se os mesmos não atenderem ao pedido da história e preferir por covardia ou por incapacidade ser peso morto do progresso e da emancipação dos trabalhadores, os próprios, mesmo sem querer tomar partido, decidirão seu lado na prática: o do inimigo.

É o que partido que se dizem socialistas não compreendem por mero oportunismo, como é o caso do PSOL de Leandro Konder, um de seus fundadores, antigo PT e PCB, que no caso Drummond – PCB, fica do lado de Drummond1 (KONDER, 2009, p. 172-3) e de sua ambiguidade num período histórico de extrema urgência e importância. Apoiando a prática pequeno burguesa dentro dos partidos comunistas Konder parece pedir mais paciências com os elementos mais atrasados da pequena burguesia e mostra sua linha política e de seu partido, atrasadas e cheias de pompas intelectuais.

Mas, idenpedentemente dos artistas e de suas fragilidades, suas obras, eternas, ficam, ganham vida, e dizem por si só.




1 KONDER, Leandro. O marxismo na batalha das ideias. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2009. p. 172-3.

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