terça-feira, 20 de março de 2012

Sobre Brecht e Marx


 Considerando que não devemos confiar
 Nas promessas mentirosas dessa gente,
Decidimos nós próprios governar
A nossa vida, melhor e bem diferente.
Considerando que só a fala do canhão
 E não outra querereis escutar,
Só lucraremos com esta decisão:
Virá-lo contra vós e disparar.
 Trecho da peça "Os dias da Comuna", de Brecht

Reproduzimos um ensaio de Louis Althusser sobre a obra de Bertold Brecht, disponível também no nº 24 da revista Crítica Marxista, ou no link: https://epress.anu.edu.au/portugues/althusser/1968/mes/brecht.htm




Sobre Brecht e Marx(1)
Louis Althusser, 1968


Estou profundamente desconcertado por tomar a palavra diante do Piccolo e seus Amigos(2), pois sou extremamente ignorante em todas as questões de teatro. Tenho alguns pequenos conhecimentos em filosofia e em política. Conheço um pouco de Marx e Lênin. É tudo.

Quanto ao teatro, tudo o que posso dizer é que gosto muito das realizações do Piccolo Teatro. Infelizmente, assisti apenas El Nost Milan, Le Baruffe Chiozzotte e Arlecchino(3). Mas, essas três peças me impressionaram profundamente. El Nost Milan desempenhou um papel importante em minhas pesquisas filosóficas. Ao assistir El Nost Milan, compreendi um pouco melhor certas coisas importantes do pensamento de Marx.

Acrescento que conheço também os Escritos Teóricos de Brecht sobre o Teatro. Acabo de lê-los nesses últimos dias(4). Eles são absolutamente extraordinários para um filósofo marxista.

Vejam: as minhas relações com o teatro são, sobretudo, relações filosóficas e políticas. Evidentemente, tenho também uma relação direta como espectador com algumas peças que assisti. Mas, a minha experiência é curtíssima. É preciso que vocês saibam disso, para corrigir o que posso lhes dizer. No fundo, falo do teatro de fora, como filósofo e como político, como filósofo marxista. Eu lhes peço, então, ao mesmo tempo um enorme rigor e uma enorme tolerância.

Se assim mesmo posso ter a audácia de falar do teatro, eu que sou apenas filósofo, é porque tenho a impressão de que Brecht, que conhecia o teatro, me permite. Brecht não deixou, durante sua vida, de colocar em relação direta o teatro e a filosofia.

Em 1929, ele escrevia: “O futuro do teatro está na filosofia”.(5) Em 1953, portanto, vinte e quatro anos mais tarde, ele retomaria a mesma tese, aplicando-a energicamente (“Un entretien socialiste”, 7 de março de 1953).(6) Ele escrevia então:

“Meu teatro... é um teatro filosófico, no sentido comum desse conceito. Quero dizer que ele se interessa pelo comportamento e pelas opiniões das pessoas... Para meu alívio, me será permitido talvez emprestar o exemplo de Einstein referindo-se ao físico Infield que, para dizer a verdade, desde sua mais tenra origem, havia acabado de refletir sobre dois seres humanos: um que anda por detrás de um raio luminoso, e outro que está preso num elevador em queda livre. Ora, a gente sabe quais coisas complexas saíram dessa reflexão. O princípio que quis aplicar ao teatro, é o de que não basta se contentar em dar uma interpretação do mundo; é preciso também transformá-lo. As mudanças que resultaram dessa vontade (vontade que eu próprio tomei lentamente consciência) sempre foram, pareçam elas insignificantes ou importantes, mudanças operadas no jogo teatral; dito de outra maneira: um grande número de regras antigas permaneceu naturalmente imutável. É nesse insignificante ‘naturalmente’ que reside todo meu erro. Nunca me ocorreu de falar, por assim dizer, dessas regras antigas que ficariam imutáveis, e muitos daqueles que leram as minhas indicações às comédias e as ‘Notas’ sobre as minhas peças pensam que eu propunha suprimir essas regras também. Que meus críticos vão primeiramente, como simples espectadores, ao teatro que faço, em vez de se preocupar em primeiro lugar com as minhas teorias, e eles verão simplesmente teatro, um teatro que espero cheio de fantasia, de humor e de idéias. E é ao analisar o efeito produzido por esse teatro que eles serão surpreendidos pelas novidades, que eles poderão depois encontrar a explicação nas minhas declarações teóricas.”

Permitam-me, na condição de filósofo, resumir os pontos fundamentais desse texto capital. Brecht enuncia um certo número de Teses determinadas, direta ou indiretamente. Vou retomá-las, explicando-as muito esquematicamente. Eis o que Brecht nos diz:

1. O teatro existe. É um acontecimento histórico e cultural. É um acontecimento.

2. Eu não quis suprimir suas regras antigas. Isso quer dizer: eu não quis suprimir o teatro. Pois essas regras antigas são justamente aquelas que fazem com que o teatro seja o teatro. Essa tese é muito importante. Ela indica que o teatro não é a vida, que o teatro não é a ciência, que o teatro não é propaganda ou agitação diretamente política. Isso não quer dizer que Brecht não reconhecia a importância da vida, da ciência e da política: ao contrário, ele julga que essas realidades são essenciais para o teatro, e ninguém afirmou isso com tanta força como ele. Mas, isso quer dizer que, para Brecht, o teatro deve continuar a ser teatro, ou seja, uma arte. Isso se nota claramente quando ele declara: vão ver minhas peças, e vocês verão “simplesmente teatro, um teatro que espero cheio de fantasia, de humor e de idéias”.

3. Eu me limitei a introduzir algumas mudanças no interior do teatro, no interior do “jogo” do teatro, a fim de produzir certos efeitos novos. É preciso entender “jogo” em dois sentidos. Primeiramente, no sentido tradicional do jogo teatral (o teatro é um jogo: os [atores] jogam; o teatro é uma representação fictícia da realidade. O jogo não é a vida, não é a realidade. O que é representado no teatro não é a vida em pessoa. Se ela é representada, é porque ela não está presente). Mas, é preciso entender “jogo” num segundo sentido: pois, o teatro permite esse “jogo” (no sentido em que há “jogo” numa porta, numa dobradiça, num mecanismo). Isso quer dizer que o teatro é tanto acontecimento como abrange o lugar, o “jogo”, para introduzir essas mudanças.

4. As mudanças que introduzi no teatro dependem da minha vontade filosófica. Essa filosofia é resumida por Marx na célebre XI Tese sobre Feuerbach: os filósofos se contentaram em interpretar o mundo, é preciso transformá-lo. A filosofia que orientou Brecht nas mudanças que ele introduziu no “jogo” do teatro é a filosofia marxista.

Ora, justamente, o que me impressiona imensamente, é um tipo de paralelismo entre a revolução de Brecht no teatro e a revolução de Marx na filosofia. Brecht não era filósofo, dir-se-á, e os professores de filosofia não vão buscar em Brecht lições de filosofia. Por quê? Porque ele não escreveu um livro de filosofia, ele não elaborou um sistema filosófico, nem tinha um discurso teórico filosófico. O próprio Brecht afirmava que era leigo em filosofia. Os professores de filosofia não têm razão. Pois, Brecht compreendeu muito bem o essencial da revolução filosófica de Marx. Ele a compreendeu em estado prático, não como um discurso teórico, mas como chamarei de sua prática teatral. Brecht não fala nunca de prática teatral, mas sempre de mudanças na técnica teatral. Ele parece assim falar apenas de técnica. Mas não há técnica totalmente despida: uma técnica está sempre inserida em uma prática, ela é sempre a técnica de uma prática. A[s] revolução[ões] de Brecht na técnica teatral devem ser entendidas como efeitos de uma revolução na prática teatral.(7) Isso está absolutamente claro nos textos de Brecht: suas reformas da técnica teatral estão sempre ligadas a uma concepção do conjunto da encenação, a uma concepção do sujeito, a uma concepção da relação cena-público, atores-público, a uma concepção da relação teatro-história, a uma concepção filosófica. O conjunto desses termos faz com que as reformas técnicas de Brecht devam ser entendidas como os efeitos de uma revolução na prática teatral.

Ora, aqui está o ponto essencial. A revolução filosófica de Marx é em todos os aspectos parecida com a revolução teatral de Brecht: é uma revolução na prática filosófica.

Brecht não suprime o teatro. O teatro existe; ele desempenha um papel determinado. Marx não suprime a filosofia. A filosofia existe, ela desempenha um papel determinado. Brecht não elabora todas as partes de um novo teatro, seja um antiteatro, seja um teatro que rompe com todo o teatro passado, que, por exemplo, suprime todo o repertório. Do mesmo modo, Marx e os marxistas não elaboram todas as partes de uma nova filosofia, uma antifilosofia, ou uma filosofia que rompe com toda a tradição filosófica passada. Brecht toma o teatro tal como ele existe, e opera no interior do teatro tal como ele existe. Do mesmo modo, Marx toma a filosofia tal como ela existe, e opera no interior da filosofia tal como ela existe. O que Brecht revoluciona é a maneira de praticar o teatro: o que ele traz de novo, é uma nova prática do teatro. Do mesmo modo, o que Marx revoluciona na filosofia, é a maneira de praticar a filosofia: o que ele traz de novo, é uma nova prática da filosofia, não, como Gramsci a exprimiu injustamente, uma filosofia nova, uma filosofia da práxis, mas uma nova prática da filosofia.(8) A gente pode dizer exatamente da mesma maneira: o teatro de Brecht não é um teatro da práxis, o que há de novo nele é uma nova prática do teatro.

É necessário ir ainda muito mais longe. O que é que permite a Marx e a Brecht proporem uma nova prática na filosofia e no teatro? Uma condição fundamental: o conhecimento da natureza e dos mecanismos da filosofia (para Marx) e do teatro (para Brecht).

Essa é uma questão completamente determinante. Pouco importa que esse conhecimento da natureza e dos mecanismos da filosofia e do teatro seja ou não o objeto de grandes obras teóricas. Isso é desejável, mas não é absolutamente indispensável. Hoje ainda, nós não temos uma teoria satisfatória da natureza e dos mecanismos, nem da filosofia nem do teatro. Desse ponto de vista, Marx e Lênin são tão “ingênuos” frente à teoria da natureza e aos mecanismos da filosofia quanto Brecht o é frente à natureza e aos mecanismos do teatro. Eles são, se quiser, ingênuos teoricamente, do ponto de vista dos professores de filosofia, que têm sempre necessidade de tratados teóricos explícitos e impecáveis. Mas, para nós, o que conta são os fatos novos, as práticas novas, mesmo se esses fatos e essas práticas revolucionárias não são o objeto de discursos teóricos explícitos e impecáveis. É na prática filosófica de Marx e de Lênin, é na prática teatral de Brecht que se pode descobrir seu conhecimento, mais ou menos explicitado, da natureza e dos mecanismos de seu objeto, a filosofia ou o teatro.

Se examinarmos essas duas práticas, podemos constatar esse resultado comum à filosofia e ao teatro: é muito evidente que Marx e Lênin, de um lado, e Brecht, de outro, sabem perfeitamente, pois compreenderam que a filosofia e o teatro têm profundas relações com as ciências, de um lado, e com a política, de outro. Eis aqui o primeiro ponto.

Mas isso não basta. Para simplificar as coisas, deixo de lado a relação com as ciências, e retenho apenas a relação com a política. Marx e Brecht compreenderam, cada um à sua maneira, que o próprio da filosofia e do teatro era manter com a política uma relação mistificada. A filosofia e o teatro são fundamentalmente determinados pela política, e, contudo, fazem todos seus esforços para eclipsar essa determinação, para negar essa determinação, para fingir que escapam à política. Fundamentalmente, tanto na filosofia como no teatro, é sempre a política que fala: mas quando a filosofia ou o teatro fala, o resultado, é que não se entende mais nada da voz da política. A filosofia e o teatro falam sempre para encobrir a voz da política. E conseguem muito bem. Podemos até mesmo dizer que, na imensa maioria dos casos, a filosofia e o teatro têm por função abafar a voz da política. Eles existem apenas através da política, e ao mesmo tempo eles existem para suprimir a política, à qual eles devem sua existência. O resultado é bem conhecido: a filosofia passa seu tempo afirmando que não faz política, que está acima dos conflitos políticos de classe, que se dirige a todos os homens, que fala em nome da Humanidade, sem tomar partido, ou seja, sem reconhecer o partido político que ela segue. É o que Marx chama de a filosofia que se contenta em interpretar o mundo. Na realidade, nenhuma filosofia se contenta em interpretar o mundo: toda filosofia é politicamente ativa, mas a maioria das filosofias passa seu tempo negando que sejam politicamente ativas. Elas dizem: nós não tomamos partido em política, nós nos contentamos em interpretar o mundo, em dizer o que ele é. É o que Freud denomina uma denegação. Quando alguém vem lhes dizer: eu não faço política, você pode estar certo que esse alguém faz. É a mesma coisa com o teatro. Brecht chamou pelo seu nome esse teatro que faz política, mas declara que não faz política: é o teatro do divertimento vespertino, o teatro culinário, o teatro do simples gozo estético. Há tanto uma filosofia pudica como um teatro pudico. A filosofia pudica é doente de especulação. O teatro pudico é doente de esteticismo, doente de teatralidade. Nesses dois casos, vemos aparecer uma verdadeira religião, uma fascinação, uma vertigem, uma hipnose, um gozo puro. A filosofia torna-se um objeto de consumo e de gozo especulativo, o teatro um objeto de consumo e de gozo estético. Os filósofos acabam criando filosofias para o consumo e o gozo especulativo, os dramaturgos, e os diretores e atores, acabam criando o teatro para o consumo e o gozo estético, culinário, etc. A crítica da especulação-interpretação do mundo em Marx, e a crítica do teatro ou da ópera culinária em Brecht são uma única e mesma coisa.
Daí deriva a revolução da prática em Marx e em Brecht. Não se trata de criar uma nova filosofia, ou um novo teatro. Trata-se de instaurar uma nova prática no interior da filosofia, para que ela deixe de ser interpretação do mundo, ou seja, mistificação, e sirva à transformação do mundo; trata-se de instaurar uma nova prática no teatro para que ele deixe de ser mistificação, ou seja, divertimento culinário, e sirva também à transformação do mundo. O primeiro efeito da nova prática deve assim se pronunciar sobre a destruição da mistificação da filosofia e do teatro. Não suprimir a filosofia e o teatro, mas suprimir sua mistificação. É preciso então chamar as coisas pelo seu nome, chamar a filosofia pelo seu nome, chamar o teatro pelo seu nome, reconduzir a filosofia ao seu verdadeiro lugar e reconduzir o teatro ao seu verdadeiro lugar, para fazer aparecer essa mistificação como mistificação e, ao mesmo tempo, para mostrar a verdadeira função da filosofia e do teatro. Tudo isso, naturalmente, deve se fazer na filosofia e no teatro. Para colocar a filosofia e o teatro nos seus devidos lugares, é preciso efetuar um deslocamento (spostamento) no interior da filosofia e do teatro.

Desse modo, as coisas são bastante parecidas em Marx e em Brecht. É nesse sentido que é preciso compreender o que Brecht chama de o Verfremdunseffekt, que foi traduzido muito bem para o francês como efeito de distanciamento(9), que eu traduziria de preferência como efeito de deslocamento(10) ou efeito de decalagem.(11)

Esse efeito não deve ser entendido apenas como efeito de técnicas teatrais, mas como um efeito geral da revolução da prática teatral. Não se trata de mudar de lugar, de deslocar alguns pequenos elementos no jogo dos atores, trata-se de um deslocamento que afeta o conjunto das condições do teatro. A mesma regra é válida para a filosofia. Trata-se, portanto, de um conjunto de deslocamentos, que constituem essa nova prática.

Entre todos esses deslocamentos, há um deslocamento fundamental que é a causa de todos os outros e que resume ao mesmo tempo todos os outros: o deslocamento do ponto de vista. A grande lição de Marx e de Brecht é a de que é preciso deslocar o ponto de vista geral a partir do qual todas as questões da filosofia e do teatro são consideradas. É preciso abandonar o ponto de vista da interpretação especulativa do mundo (filosofia) ou do gozo estético culinário (teatro), e se deslocar, para ocupar um outro lugar, que é, grosso modo, aquele da política. Eu já disse que na filosofia e no teatro, é a política que fala, mas que sua voz é em geral encoberta. É preciso voltar a dar a palavra à política, é preciso então deslocar a voz da política e a voz do teatro, para que a voz que se compreende seja a voz que fala do lugar da política. É o que Lênin refere-se à posição de partido em filosofia. Há em Brecht toda uma série de expressões que voltam a dizer: é preciso ocupar uma posição de partido no teatro. Por posição de partido, não é preciso se compreender algo que seja idêntico à posição de partido na política, pois a filosofia e o teatro (ou a arte) não são a política. A filosofia é diferente da ciência, e diferente da política. O teatro é diferente da ciência e da política. Não se trata, portanto, de identificar filosofia e ciência, filosofia e política, teatro e ciência, teatro e política. Mas é preciso ocupar na filosofia como no teatro o lugar que representa a política. E para ocupá-lo, naturalmente, é preciso encontrá-lo. Isso não é fácil, porque para saber onde está o lugar da política na filosofia e no teatro, é preciso saber como funcionam a filosofia e o teatro, e como a política (e a ciência) são representadas. Não se vê a olho nu o lugar da política no teatro. (Esse lugar é similar ao que ela se desloca na história, ou, para falar com mais precisão, é similar ao que a política muda de representantes na história da filosofia e do teatro).

Uma vez que se efetuou esse deslocamento fundamental, todos os deslocamentos são conseqüências deste. Na realidade, tudo isso se faz ao mesmo tempo. É para clarificar a exposição que faço essas distinções. Na realidade, não há distinções.

Todos os efeitos do deslocamento de que fala Brecht são efeitos desse deslocamento fundamental. Vou tentar enumerá-los.

1. É necessário, em primeiro lugar, deslocar o teatro da ideologia do teatro que existe na cabeça dos espectadores. Para isso, é necessário “mostrar” que o teatro é teatro, apenas teatro, e não a vida. É necessário mostrar que a cena é uma cena, colocada artificialmente diante dos espectadores, e não o prolongamento da sala. É necessário mostrar que há entre a sala e a cena um vazio, uma distância. É necessário mostrar essa distância sobre a própria cena. Daí deriva toda uma série de reformas técnicas relativas à decoração, às luzes, aos objetos, ao vestuário, aos cartazes, aos painéis, aos songs, etc. É necessário romper com a cumplicidade entre os espectadores e o espetáculo, que é uma cumplicidade mistificada. Trata-se aí de um deslocamento físico, que faça ver o que o teatro e os espectadores não querem ver: que o teatro não é a vida.

2. É necessário em seguida deslocar a concepção da peça da concepção tradicional. É o que Brecht refletiu ao falar de “estilo épico”. Isso se refere antes de tudo à concepção do diretor e, evidentemente à concepção do autor desde que ele escreva uma peça. Mas a concepção do diretor é completamente determinante. Pode-se encenar mal uma boa peça (por exemplo, Mãe Coragem no TNP(12)), e encenar muito bem uma peça menos boa (por exemplo, El Nost Milan(13)). Esse deslocamento consiste essencialmente em descentrar a peça, em evitar que a peça seja a forma da representação espontânea que o público faz da vida, dos conflitos, do drama e de sua solução. Podemos resumir esse deslocamento tomando um exemplo inteiramente simbólico, e dizendo que a peça não deve ter seu centro nela mesma, mas fora dela, ou que não deve mais haver heróis na peça, que não deve mais haver na peça a cena na qual tudo é apresentado e resumido, da grande cena do conflito clássico. Por exemplo, o golpe de gênio de Brecht em Galileu é de não ter mostrado a grande cena do processo (cf. Dort(14)). O processo de Galileu, todo mundo espera vê-lo. Todo mundo espera ouvir Galileu pronunciar a frase histórica, à propósito da terra: “e contudo ela gira!” Brecht não mostra o processo, e Galileu não pronuncia a frase histórica. O resultado, é que o centro da peça não está na peça, mas fora da peça, e que esse centro, a gente não o vê nunca.

3. É necessário enfim deslocar o jogo dos atores da idéia que os espectadores e os próprios atores fazem do jogo de um ator. Sobre esse ponto, todo mundo conhece as grandes inovações técnicas de Brecht. É diante de si próprio que o ator deve tomar essa “distância”: o ator deve se deslocar diante da ideologia do ator. Normalmente, temos a tendência de conceber todas essas inovações de Brecht como puramente técnicas. É verdade: Brecht modificou a técnica do jogo do ator, mas essa técnica é uma parte de uma alteração mais ampla, é uma parte de uma alteração da prática teatral em seu conjunto. Se a destacamos do resto, ela funciona sem efeito. Hoje, todo mundo aplica as técnicas de Brecht. Podemos dizer sem receio de se enganar que a redução da revolução da prática teatral de Brecht a simples receitas (...) técnicas é uma traição à revolução de Brecht. Uma prática é bem diferente de uma técnica.

O resultado de todos esses deslocamentos produz uma nova relação entre o espetáculo e o público. É uma relação deslocada. Brecht exprimiu esse efeito de deslocamento como efeito-V(15), no próprio público, como o fim da identificação. O público deve deixar de se identificar com o que a cena lhe faz ver, ele deve se encontrar em posição crítica, e tomar o seu próprio partido, julgar, escolher e se decidir. A peça não decide nada por ele. A peça não é uma roupa pronta a vestir. A peça não é uma roupa. O público deve cortar sua própria roupa com o tecido da peça, ou ainda com os pedaços de tecido que a peça lhe dá. Pois, não há na peça roupa pronta. Em termos simples, não há heróis.

Não tenho tempo de demonstrar que na revolução filosófica de Marx, as coisas se passam exatamente da mesma maneira. A revolução filosófica de Marx consiste em provocar deslocamentos na filosofia com um duplo objetivo: suprimir em estado prático os efeitos da mistificação filosófica, e permitir àqueles que são atingidos pela prática filosófica marxista de se decidir com todo conhecimento de causa.

Resta, contudo, uma diferença importante: é que, apesar de todas essas semelhanças, o teatro não é a filosofia, o que constitui o objeto do teatro não é o que constitui o objeto da filosofia. Do teatro, é a arte, da filosofia, é a teoria.

É talvez aqui que Brecht atinge seus limites. Ele afirma que embora o teatro deva mostrar a política e a ciência, deve subsistir o teatro, pois o teatro é algo de específico, mas ele não diz muito bem em que o teatro é algo de específico, ele não diz o que faz com que o teatro seja teatro e não outra coisa. Contudo, Brecht nos dá razoavelmente certas indicações positivas. Por exemplo, ele afirma que o teatro deve mostrar, fazer ver, de maneira concreta, visível, o comportamento dos atores, e que a particularidade do teatro é mostrar. Mas ele diz também que o teatro deve divertir. A particularidade do teatro é então mostrar alguma coisa de importante, divertindo. Como se pode ao mesmo tempo mostrar e divertir, e de onde vem o divertimento? Sobre isso, Brecht oferece explicações que não são muito satisfatórias. Ele tem a tendência de identificar “mostrar” e fazer conhecer (ciência). (Há um lado Aufklärer em Brecht: o tema do “teatro da era científica”, etc.) Ele tem a tendência de interpretar o divertimento como um jogo, jogo de compreender, jogo de se sentir capaz de tomar partido na transformação do mundo, jogo da transformação. Ele tem a tendência de colocar em relação direta, em curto-circuito, a transformação do mundo com a transformação do espectador, a ciência da época moderna com o conhecimento objetivo que o teatro concede ao espectador. Todavia, essas explicações esbarram em dificuldades. A dificuldade essencial, o próprio Brecht a enunciou, ao afirmar que o que se passa sobre o [cena do] teatro não é a ciência, nem a vida, e que é necessário desconcertar o espectador, frustrar sua expectativa. Como essa decepção pode ser ao mesmo tempo um jogo? E qual relação há entre esse jogo e o divertimento que o teatro deve necessariamente buscar? As explicações teóricas de Brecht são insuficientes, mas, uma vez mais, não é preciso acreditar que Brecht está por inteiro em suas explicações teóricas. Há muito mais em sua prática que em suas explicações teóricas. Gostaria de tentar, por conta própria, tirar algumas explicações teóricas suplementares da prática de Brecht, e também de Strehler.

De início, colocarei uma questão muito simples a qual o próprio Brecht respondeu: qual é o objeto da representação teatral, de que é feito o objeto que permite à representação teatral ter lugar, ao mesmo tempo do lado do público, e do lado dos atores? É um fato: o teatro existe. Mas para que ele exista, é necessário que se passe alguma coisa entre o público e a cena: é necessário então que haja alguma coisa que permita a comunicação teatral, e sobre a qual se exerce a prática teatral. Brecht a exprime muito bem: são as opiniões e os comportamentos dos homens. Na nossa linguagem teórica marxista, diremos: o objeto do teatro é o ideológico. O ideológico não são apenas idéias, ou sistemas de idéias, mas, como elucidou Gramsci, são ao mesmo tempo idéias e comportamentos, idéias nos comportamentos, que formam um todo. Desde que os espectadores venham ao teatro, eles têm, na cabeça e no corpo, idéias e comportamentos. Sobre a cena, nós lhes mostramos suas idéias e comportamentos, idéias nos comportamentos, mostramos-lhes o ideológico. O que permite a existência do teatro é que o público vem ver sobre a cena o que ele tem na cabeça e no corpo. Para retomar uma velha fórmula, que não é desmentida, o que o público vem ver no teatro é a si próprio. O teatro é como um espelho no qual os espectadores vêm para ver o que eles têm na cabeça e no corpo, eles vêm para se reconhecer. É completamente fundamental: pois nós já sabemos que o ideológico tem por função o reconhecimento (e não o conhecimento). A prova: podemos encontrá-la na reação popular espontânea diante de uma representação teatral bem sucedida de um personagem. O público diz: “É assim mesmo! Como é verdadeiro.” É a expressão própria do reconhecimento, como diante de um retrato: “É ele mesmo.” Quando vem ao teatro, o público vem sempre na esperança de poder dizer no fim: “É assim mesmo.” Quando ele se reconheceu, quando está bem seguro de ser reconhecido, ele fica contente. Primeira satisfação.

Mas para que esse prazer do reconhecimento de si ideológico seja verdadeiramente saboroso, é necessário que ele contenha um certo risco, o risco de um certo perigo. Quando nós vimos ao teatro para procurar uma boa confirmação de nós mesmos, um bom reconhecimento de nós mesmos, não estamos completamente seguros de nós mesmos, duvidamos um pouco de nós mesmos. Naturalmente, não confessamos, mas isso faz parte do prazer que esperamos. É porque o teatro gera verdadeiramente prazer apenas ao jogar com esse risco, com esse perigo, com essa dúvida – para afastar finalmente todo risco, todo perigo, toda dúvida. Ao jogar com os medos, com as dúvidas, com os riscos, o teatro fala bem alto o que pensamos apenas bem baixo. Isso dá ao espectador um duplo prazer: de início, ele ri, porque ele crê que são sempre os outros que têm medo, que duvidam, etc. Depois, ele fica contente, pois afinal de contas tudo se há de arranjar, de uma maneira ou de outra, e o prazer é multiplicado pelos perigos de que escapamos. Por fim, reconhecemos, e afirmamos: é bem verdade, o que significa que nos reconhecemos, que nós justificamos. Quando vem ao teatro, o espectador aceita a regra do jogo: com razão “jogamos” com suas idéias e seus comportamentos, para lhe mostrar que suas idéias e seus comportamentos não correm nenhum risco. O teatro é uma catarse, dizia Aristóteles, e Freud: a arte é um triunfo fictício. Traduzamos: um triunfo fictício, é um risco fictício. No teatro, o espectador se dá o prazer de se ver brincar com fogo, para estar bem seguro que não há fogo, ou que o fogo não está nele, mas nos outros, de todo modo para estar seguro de que não há fogo nele.

Se quisermos saber por que o teatro diverte, é necessário levar em conta esse tipo muito particular de prazer: aquele de brincar com fogo sem perigo, com essa dupla condição: 1. é um fogo sem perigo porque ele está sobre a cena, e porque a peça de teatro apaga sempre o fogo, e 2. quando há fogo, este está sempre no vizinho.

Aqui é preciso dizer algumas palavras sobre os vizinhos, ou seja, o público. Pois o público é composto de vizinhos. O que distingue o teatro do cinema, se disse há muito tempo, é que o espetáculo está na sala. Historicamente isso é verdade: no teatro reencontram-se as diferentes classes da sociedade, em companhia ou em delegações mais ou menos numerosas. Uma sala de teatro, com seus lugares diferentes, os bons e os maus, com seus entreatos, com suas conversações, é uma pequena sociedade, onde são reproduzidas as relações sociais e suas diferenças. O povo vem assistir os grandes. Os grandes sabem que são observados. Numa sala de teatro, as pessoas se vêem e se observam. Elas se vêem duplamente: na sala antes de se ver sobre a cena. Os vizinhos, nos quais há fogo sobre a cena, estão também, como por acaso, na sala. Os pequenos, que observam os grandes com consideração na sala, riem dos grandes quando há fogo neles sobre a cena, ou eles os imaginam tão grandes sobre a cena pelo fato de superarem as crises de sua vida e de sua consciência.(16)


Notas:
(1) Este texto foi publicado no tomo II da coletânea de textos de Louis Althusser, organizada por François Matheron e intitulada: Écrits philosophiques et politiques. Paris, Éditions STOCK/IMEC, 1997, pp. 561-578. Na apresentação deste texto, Matheron faz as seguintes observações: “As primeiras linhas desse texto sobre Brecht e Marx, ao qual o próprio Althusser não dá nenhum título, mostra que ele foi escrito à propósito do debate organizado, em 1º de abril de 1969, pelo Piccolo Teatro de Milão, no curso do qual foi lida a sua Lettre à Paolo Grassi. Seu caráter inacabado, somado à ausência de qualquer menção a esse texto no balanço da discussão publicado no jornal L’Unità, em 3 de abril de 1968, permite, contudo, observar que ele não foi pronunciado. Os arquivos de Althusser contêm igualmente notas de leitura sobre os Escritos sobre o Teatro de Brecht, bem como interessantíssimas notas preparatórias, cujo conteúdo nem sempre foi retomado, no próprio texto”. Tradução de Danilo Enrico Martuscelli.

(2) Nota da Tradução Brasileira (N. T. B.). Althusser refere-se aqui ao Piccolo Teatro de Milão e à Associação dos Amigos do Piccolo Teatro, respectivamente.

(3) N. T. B. Conservamos aqui o nome das peças em italiano, tal como aparecem no original do texto. El Nost Milan foi escrita por Carlo Bertolazzi, já as peças Le Baruffe Chiozzotte e Arlecchino servitore di due padroni foram escritas por Carlo Goldoni. Todas as três peças foram dirigidas por Giorgio Strehler. Althusser faz uma análise da peça de Bertolazzi no capítulo “‘Piccolo’, Bertolazzi e Brecht: notas sobre um teatro materialista”, da obra A favor de Marx.

(4) Nota da Edição Francesa (N. E. F.). Notas datilografadas sobre os Écrits sur le théâtre de Brecht foram conservadas nos arquivos de Althusser.
N. T. B. A última edição da obra Estudos sobre teatro, publicada no Brasil, foi traduzida por Fiama Hasse Pais Brandão pela Editora Nova Fronteira, em 2005. Cabe observar, no entanto, que as edições brasileiras dessa obra de Brecht não são completas. Para se ter uma noção disto, basta comparar o número de páginas da edição brasileira citada acima com o número de páginas da edição francesa publicada pela Plêiade, em 2001. Enquanto que a primeira possui apenas 256 páginas, a segunda possui 1470. É importante ressaltar que para tratar da obra de Brecht, Althusser toma como referência a edição francesa dos Écrits sur le théâtre, organizada pela editora L’Arche.
(5) N. E. F Écrits sur le théâtre. Paris, L’Arche, 1963, p. 24.
(6) N. E. F. Écrits sur le théâtre. Paris, L’Arche, 1963, p. 265-266.
(7) N. E. F. Texto incerto. O texto datilografado contém: “A revolução de Brecht na técnica teatral deve ser entendida como efeitos de uma revolução na prática teatral”, precedida por uma passagem riscada por Althusser: “As revoluções técnicas de Brecht devem ser entendidas como...”.
(8) N. E. F. Notamos que o penúltimo parágrafo de Lênin e a filosofia (conferência pronunciada em 24 de fevereiro de 1968) termina com uma fórmula praticamente idêntica “O marxismo não é uma (nova) filosofia da práxis, mas uma prática (nova) da filosofia”.
(9) N. T. B A tradução para o francês do verbete alemão Verfremdungseffekt, ao qual Althusser se refere, é a seguinte: effet de distanciation. Essa noção elaborada por Brecht já foi traduzida, em Portugal, como efeito de distanciação. No Brasil, o uso mais corrente é efeito de distanciamento, embora haja autores que preferem utilizar a idéia de efeito de estranhamento. Patrice Pavis, por exemplo, considera mais apropriada a idéia de estranhamento que de distanciamento para designar a palavra Verfremdung que aparece na obra de Brecht, pois entende que “o efeito de estranhamento não se prende a uma nova percepção ou a um efeito cômico, mas a uma desalienação ideológica”. Ver: Dicionário de Teatro. São Paulo, Perspectiva, 2005, p. 106.
(10) N. T. B. No texto original de Althusser: effet de déplacement.
(11) N. T. B. No texto original de Althusser: effet de décalage. De acordo com o dicionário Houaiss, a palavra decalagem vem do francês décalage e seu sentido etimológico é o seguinte: “ação de retirar um calço e, em conseqüência, a estabilidade ou equilíbrio de alguma coisa”.
(12) N. E. F. Mãe Coragem de Brecht foi encenada no Teatro Nacional Popular por Jean Vilar, em 1951. 
(13) N. E. F. Cf. “’Picollo’, Bertolazzi e Brecht”, op. cit.
(14) N. E. F. Referência provável à Bernard Dort, “Galilée et le cocher de fiacre”, Théatre public. Essais de critique, Paris, Seuil, 1967, p. 188-196.
(15) N. E. F. “Efeito de distanciamento ou efeito V. (Verfremdungseffekt)”: Brecht, “Nouvelle technique d’interprétation”, Écrits sur le théâtre, op. cit., p. 148.
(16) N. E. F. O texto se encerra aqui, manifestamente inacabado.


A obesidade nas obras de Botero: muito além de um mero detalhe

 [Augusto Machado]


Mês que vem (19/03, mais precisamente) se comemora o aniversário de um dos mais renomados artistas da América Latina da contemporaneidade: Fernando Botero. 

Escultor, pintor, pai, e em breve, um homem de 8 décadas de vida, Botero nasceu na Colômbia e teve a oportunidade de estudar e trabalhar em grandes instituições do mundo da arte. Mas ao invés de se vender à estética virtualizada e "líquida" da pós-modernidade, atual período de total falência ideológica do imperialismo, nosso artista buscou em suas origens culturais criar uma estética próprio, de um concreto quase obseno, que o deixou famoso em todo mundo: as formas "gordinhas".

Longe de retratar ou querer denunciar as sociedades do centro do sistema com uma população cada vez mais obesa, graças a um estilo de vida sedentário e uma alimentação "moderna" de baixos valores nutricionais mas muitas calorias e carboidratos, a obesidade nas obras de Botero, que não só atingem figuras humanas, mas também animais, não são nada "empíricas". É uma obesidade quase ontológica, por demais abstrata, de um mundo formado por seres que transgridem a própria forma, de uma essência que incomoda. Que significaria isso? Qual representação ou sentimentos o artista quer expressar, qual ideia sobretudo sobre o humano subjacente?

Botero eleva a gordura a um nível do erótico, mas também da ingenuidade, da jocosidade, da melancolia, ou seja, do humano. Contrapondo-se a um ideário de perfeição corporal de uma beleza do magro propagada pela mídia internacional, resultado de uma era onde a biopolítica implementa sua ditadura mais cruenta, as figuras de Botero, gordas, disformes, altas ou baixa demais, de membros e troncos quase inflados feito balões, forçam-nos a identificá-las como humanos, vivos, e além disso portadores de personalidade, cultura, desejo. Mas os gordos em suas obras não são os diferentes, o que sustentaria um discurso relativista, como dito, é próprio da natureza e a todos nos interpela.

Quando Botero retrata cenas cotidianas das camadas populares, a gordura ganha um ar de fragilidade, quase infantil de pureza, apesar dos grandes e parrudos corpos, ou da nudez e malícia. Quando se retraram cenas burguesas, ou "revisões" de grandes obras, temos um ar de ironia, onde percebemos suas decadências, se tornando quase um teatro dos horrores de sujeitos desajeitados. Quando retrata episódios históricos, ou cenas políticas a gordura ganha um ar quase insuportável: numa cena onde está em ação o Terror, um ponto de inflexão decisivo, da vida ou da história, dialeticamente, a forma mais irrealista (ou seria hiperrealismo?) de nos representar, talvez seja a mais eficiente para nos identificarmos (não acontece isso com Guenirca?).

A obra de Botelho fala de nós próprios, de homens em conjunto e comuns na história e em seus conflitos. A gordura é o que nos une ou nos separa, nos fortalece e nos fragiliza, nos torna iguais ou antagônicos. Em um mundo de ilusão, de fingimento, de virtualidade, a estética não-realista boterista é um exercício de desmistificação da realidade, a construção de um mundo sem photoshop. A singela e estrondosa gordura se torna uma arma materialista contra a ideologia.

A carne humana e o Terror: Botero em Abu Ghraib

A seguir disponibilizamos algumas imagens de uma recente coleção de forte cunho político do artista: Abu Ghraib. O objetivo maior dessa coleção é a denúncia do terror da invasão imperialista do Iraque e das práticas de tortura realizada por países e organismos "humanitários" ou "defensores da democracia" sobre os povos oprimidos. Cenas como as de Abu Ghraib, cujo mundo todo presenciou como se um espetáculo fosse, não são episódios raros na história do capitalismo ou do imperalismo ianque: aconteceu e acontece ainda, em diversas partes do mundo e fazem parte da espinha dorçal dos aparelhos repressivos e terroristas do imperialismo, fundamentais para a continuidade da exploração econômica em escala global. O colombiano aqui denuncia um modelo civilizatório que precisa de uma barbárie para sua continuidade e "normalidade" bem semelhante à barbárie espanhola que dizimou os povos pré-colombianos de sua terra. De extrema historicidade a obra se torna um próprio auto-retrato, já que, enfim, estamos todos nesse mesmo processo histórico.

Acreditamos que estas obras não nos passam um quietismo pessimista, de um mundo sem saída, mas representam um mundo crual que precisamos conhecer, friamente, para transformar: é um chamado à transformação, à resistência e à esperança.





sábado, 10 de março de 2012

"O caminho do inferno é pavimentado de boas intenções": ensaio sobre o anarquismo

[Augusto Machado]


Gustave Doré


A "esquerda" é definida pela disposição de suspender marco moral abstrato, ou parafraseando Kierkegaard, de realizar uma suspensão política do Ético.
Zizek 


 O leninista, visto que persegue uma ação de classe, abandona a moral universal, mas esta lhe será devolvida no universo novo dos proletários de todos os países.[...] A política é, por essência, imoral.
Ponty


Nas últimas décadas, o fim do bloco socialista e a deterioração de Estados e Partidos comunistas que se tornaram revisionistas, como é o caso chinês, ou reformistas, como os PC's de todo o mundo, tem aberto um terreno fértil para outras teorias socialistas não-marxistas, já que o marxismo e sua proposta política teria perdido grande parte de sua legitimidade com os fracassos citados. O anarquismo é uma dessas teorias. A atrativa crítica ao "autoritarismo" e ao "totalitarismo estatal" de tipo leninista parece explicar as causas do fracasso e apontar um futuro promissor e renovado para a revolução. Os anarquistas tomam a derrota do movimento comunista do século XX e tentam com isso descartar o marxismo enquanto alternativa do horizonte político. Teóricos que perdiam cada vez mais sua influência nos movimentos revolucionários, à época, com o avanço do socialismo inspirado no marxismo, retornam das cinzas, e este, antes influência quase única vai perdendo terreno, não só para o anarquismo, mas para outras variantes mais tradicionais ou mais ecléticas.

Para Kurz (2011), a atração pelo anarquismo em oposição ao marxismo há muito é bastante comum, e faz parte de um movimento mais ou menos justo (mas não passa muito disso), por vezes até edipiano, de negação do comodismo da esquerda mais tradicional: "qualquer criança sabe que o pensamento anarquista coloca como questão central a rejeição por princípio de toda e qualquer estatalidade. Essa é também a razão porque os rebentos de pais marxistas de classe média atravessam frequentemente uma fase anarquista, para fazer ouvir um protesto contra a satisfação ideológica dos seus progenitores, que pode entrar em fricção muito facilmente (e com plena justificação) contra o conformismo cívico burguês em que caíram muitos anteriores e posteriores a 68, como clientela democrática vermelha-verde. A animosidade anarquista contra o Estado pode constituir um emblema provocatório apropriado, com o objectivo de deixar o conflito de gerações fazer-se ouvir no lar dos sentimentos burgueses de esquerda."

Para Hobsbawm (2003, p. 92-94), o processo de perda de hegemonia do marxismo no campo da esquerda revolucionária e crescimento das tendências anarquistas ou libertárias se iniciou cedo, com a crise que o movimento comunista sofre após a morte de Stalin (1953). Somando-se a esse fato estaria também a aparente insuficiência da teoria marxista e sua prática política em lidar com as modificações do capitalismo, sobretudo nos países centrais, que escapavam de "previsões", baseadas no crescimento das massas proletárias e deterioração de suas condições de vida. Com o capitalismo pós II guerra se renovando, e a eficácia da tradicional teoria e política marxista ficando para trás em muitos sentidos, abriu-se espaço para teorias "de caráter primitivo" como o anarquismo, pouco baseadas em teorias sistemáticas, mas muito mais em voluntarismo e motivações subjetivas, facilmente ecletizada com outros elementos dos mais diversos (terrorismo individual, pacifismo, novos movimentos sociais etc.).

O retorno do anarquismo seria assim, um sinal da crise no marxismo, decorrente de seus erros e desvios, como também da deficiência da teoria marxista tradicional e de sua prática política frente às modificações no sistema capitalista. Sem dúvida esse quadro se agrava no século XXI com o fim do bloco socialista e a completa crise que o movimento comunista se encontra frente ao aparecimento de novas contradições no capitalismo além da fragmentação e enfraquecimento das organizações da classe.

Sem dúvida retornar o debate sobre marxismo e anarquismo se faz pertinente, apesar de, tal discurso hoje não ser hegemônico, nem mesmo na esquerda, mas se somar às vozes anti-soviéticas e anti-comunistas, essas sim completamente hegemônicas nesse período de ofensiva imperialista em diversas frentes.

A relação do comunismo (marxista) com o anarquismo, de um modo geral, é marcada por fortes enfrentamentos e hostilidade, por vezes variando de intensidade. Desde os embates de Marx/Engels (os "autoritários") com os socialistas democráticos de Bakunin na AIT, ou até mesmo antes, com Proudhon, no século retrasado, passando pela II e III Internacional, as duas correntes revolucionárias socialistas e suas variantes, em sua maioria, continuam a se mostrar rivais, com muitos exemplos práticos e teóricos.

A longa disputa teórica e ideológica, por vezes amenizada em momentos de unidade política, é marcada por uma literatura a perder de vista. Tentaremos aqui apresentar uma pequena contribuição ensaística, sob alguns pontos dessa disputa, de maneira não tão rigorosa empiricamente, mas que visa uma compreensão teórica das diferenciações entre o marxismo (ou pelo menos da maioria de suas correntes e interpretações) e o anarquismo (tanto das correntes mais libertárias e anarcosindicalistas, quanto das bakuninistas ou makhnovistas). Vale ressaltar que a disputa entre as duas correntes não são frutos de egos feridos, como muitas vezes pretende demonstrar historiados mais baixos (um exemplo é tentar demonstrar Marx como um erudito egocêntrico que odiava não intelectualizados como Proudhon, e por isso insistia em intrigas): a existência de cada uma demarca uma razão objetiva para a mesma e uma base de classe, não sendo apenas elaborações mentais realizadas por indivíduos e descoladas da realidade social e histórica.

O debate aqui presente possui um objetivo claro não ser sectário. Apesar de, obviamente, defender uma das teorias e realizar críticas ao seu rival, tal defesa não se realizará sem auto crítica, ou noção de limitação. O discurso doutrinário ou panfletário tem pouca efetividade fora do âmbito da agitação. Por isso, não queremos aqui apontar a teoria marxista como única realmente revolucionária e ausente de erros, mas sim como, até hoje, a mais preparada teoria do proletariado e que nos últimos séculos vem prestando um papel fundamental para o avanço da revolução socialista e da organização e crescimento da causa dos trabalhadores, além de crucial para compreensão do sistema capitalista e suas contradições.


Conhecendo o (velho) terreno de batalha

A título de sistematização didática, e início de discussão nos utilizaremos das seguintes teses de Hobsbawm (2003, p. 67-68):

"a) não existe qualquer diferença entre objetivos finais dos marxistas e anarquistas, isto é, um comunismo libertário no qual a exploração a, as classes e o Estado terão deixado de existir;

b) os marxistas acreditam que, entre esre estágio final e a deposição do poder burguês pela revolução proletária, haverá uma etapa mais ou menos prolongada, definida como "ditadura do proletariado" e outros expedientes de transição nos quais o poder do Estado teria ainda alguma participação. [...] o Estado não poderia ser abolido, mas 'se extinguiria'.

c) [...] o marxismo está comprometido com a firme crença na superioridade da centralização sobre a descentralização ou federalismo.

d) onde seja possível a participação nos processos formais da vida política, os  marxistas admitem engajamento dos movimentos socialistas e comunistas, assim como em qualquer outra atividade que possa contribuir para fazer avançar a derrubada do capitalismo."

Sobre a) - Mas seriam mesmo os fins iguais com meios diferentes? Ao nosso ver, e se arriscará em tal ponto de vista sem muitas possibilidades de defendê-lo, o anarquismo, aqui tomando excluindo as tendências mais libertárias como o anarcosindicalismo, há uma eternização a centralidade do trabalho (regime dos trabalhadores, de quem trabalha, negando a fase superior "de cada um segundo suas... para cada um..." do Crítica ao Programa de Gotha), e a permanência da política em seus moldes modernos (federalismo "sem estado"), sem tendência a modificações/superações, enquanto o marxismo tende a identificar essas características para o período de transição para o comunismo, estágio no qual não há como teorizar ou antecipar sem se especular. O comunismo, como o fim da "pré-história" aplicado de maneira gradual, seria um período de novas formas de organizações sociais, e no marxismo ganha alguns largos traços, podendo se encontrar tanto definições como "livre associação dos indivíduos", "desenvolvimento livre do indivíduo", "reino da liberdade", o fim de qualquer forma de alienação/fetichismo (Estado, por exemplo), "uma sociedade de indivíduos sem relações sociais" ou até mesmo somente fim das relações mercantis sem poder político propriamente dito (Marx e STALIN, 2006), ou início de novas relações de produção e política sem Estado ou classes (ALTHUSSER, 2002).

Sobre b) - Talvez a mais famosa divergência entre as correntes. A tese central marxista é que a luta de classes continua após a derrubada do poder da burguesia, e não se utilizar do Estado por purismo revolucionário seria um absurdo. O Estado é um instrumento de dominação de classe, no qual não pode ficar no vazio: ou se usa para derrubar a classe inimiga, ou ela usará. O marxismo prevê a tomada do poder e reinvenção dos velhos aparelhos do velho Estado. Estes se tornariam supérfluos ao cessar da luta de classes. Para o anarquismo tocar no Estado seria perpetuar e reengendrar as relações capitalistas, por ser uma "minoria" a usar deste, cujo o simples "uso" a tornaria uma classe diferente. O poder deveria ser tomado mas não se deveria se utilizar ou reinventar os aparelhos de qualquer forma de Estado. O Estado é entendido absurdamente como decisões de cima para baixo, enquanto o não Estado, decisões de baixo para cima. Esta visão será tomada mais a frente.

Sobre c) - Segundo Bukharin, a grande diferença do comunismo para com o anarquismo: primazia da "produção centralizada sob grande responsabilidade [contra a primazia da] pequena produção descentralizada". Os anarquistas buscando formar federações autônomas e "ligá-las por rede de comunicações de contatos livres", tendo como objetivo primeiro o respeito à decisões "de baixo", secundarizaria o objetivo central dos comunistas que seja a diminuição ao máximo “[d]o tempo necessário de trabalho social” com o avanço a organização científica das forças produtivas. O reino da liberdade emanaria, no anarquismo, do âmbito subjetivo (político-jurídico, da coletividade sem Estado), enquanto no comunismo a primazia seriam das condições objetivas dessa liberdade (saciar em massa e cada vez mais as necessidades básicas humanas, libertá-las do trabalho/sobrevivência, e assim criar o terreno seguro para a realização dos desejos individuais livremente associados). Claro que muitos anarquistas se referem a condições objetivas, mas de maneira muito incerta e com pouca coerente: só ver a disputa Marx x Bakunin na AIT, período de construção da classe operário e consolidação do capitalismo industrial, onde o segundo se voltada mais contra os tiranos e patrões do que para a análise sobre as condições materiais e objetivas de superação do modo de produção. Segundo Marx, as premissas de uma revolução são "as condições históricas definidas de desenvolvimento econômico". A impressão dada pelo anarquismo é que o socialismo é uma necessidade histórica mais por causa das relações de exploração e opressão injustas e insuportáveis do capitalismo (e por isso se deve "fazer" a revolução), e não por ser uma tendência já nascente no desenvolvimento do modo capitalista de produção e superior a este. Mais uma vez o aspecto humanista-moral da "emancipação política da humanidade" (fim do Estado) é secundarizado no comunismo, ou, explicando melhor, não é prioritário de imediato.

A supressão imediata, ou sem mediação, da divisão social do trabalho imposta pelos anarquistas seria uma negação da modernidade? Aqui percebemos um ranço pequeno burguês dessa corrente. E, aliás, talvez esteja aí a razão pela qual o anarquismo seja tão suscetível à utilização ideológica da pequena burguesia, do lumpensinato, da juventude de contra-cultura, e artistas com perspectivas estéticas vanguardistas. Ao invés de pregar o avanço e superação do já existe, como fazem as classes mais recentes e por isso revolucionárias, como o proletariado, o pensamento pequeno burguês, aqui de modalidade radical, busca o retorno de algo idílico, de um modelo pré-moderno onde o trabalhador não era alienado. Os populistas russos são um exemplo clássico desse propensão, combatida por Lenin. A pequena burguesia, classe formada pela poeira restante de outros modos de produção, arruinada pela grande produção, pode se manifestar de maneira radical (que busca de maneira apressada, violenta e sem mediações, individual ou coletivamente realizar seus ideais políticos) de forte viés subjetivista e explosivo e até mesmo se aliar e atrair muitos setores proletários, parecendo ser os verdadeiros revolucionários pelo seu heroísmo. Todavia é uma tal revolucionarismo não consegue ir muito longe, sendo incapaz de levar à superação do modo de produção capitalista.

Para o comunismo, a centralização tem um papel objetivo de extrema importância já que, o principal inimigo, como dizia Lenin, depois da "fácil expropriação" dos burgueses e latifundiários, é a longa luta contra a pequena produção e propriedade e os velhos costumes, que constantemente pode se tornar em relações capitalistas. Bukharin continua: "A condição fundamental para vitória econômica sobre o capitalismo consiste em assegurar que a 'expropriação dos expropriadores' não degenere em uma atomização, mesmo se fosse em iguais partes [federalismo]. Qualquer divisão de lucros produz pequenas características arrendatárias, mas grande propriedade capitalista cresce de pequena terra e deste jeito uma divisão de bens de posse dos líderes ricos, de necessidade de um renascimento de uma mesma classe de ricos." A concentração, que para os anarquistas parecem gerar novos poderosos e novas classes, na realidade é o passo necessário para a superação da anarquia na produção capitalista e construção de uma possível propriedade em comum, e não a proposta divisão/descentralização, formal e aparentemente correta.

Sobre d) - este ponto é brilhantemente tratado no clássico A doença infantil do "esquerdismo" no comunismo por Lenin (2004). Neste texto o revolucionário faz um levantamento das influências esquerdistas no movimento comunista internacional. Tais influências em muito se aproximam do anarquismo no tocante boicote político e não participação das eleições e organismos estatais. Para Lenin esse radicalismo, que também se expressa na postura de "nenhum compromisso, ou aliança", é extremamente prejudicial e não tira as lições da revolução vitoriosa de outubro dirigida pelos bolcheviques. Pode-se dizer também que tal postura seria incapaz de aplicar uma linha de massas, segundo Mao, já que toma o nível de consciência da vanguarda, a nível de propaganda, que se auto-legitima a nível de agitação. 

Segundo o leninismo, o processo revolucionário, sendo dialético, é feito de reveses, sendo necessário posturas táticas mais atrasadas, em momentos de refluxo, além de combinação de todos os meios possíveis para a propagação dos ideais e objetivos revolucionários. E, sendo materialista, afirma que as condições não são escolhidas pelo sujeito, ou estas não formam um total campo de ação transformável, já que depende da objetividade que lhe é superior. A atividade parlamentar, assim, não seria uma regra geral, da mesma forma que seu boicote: atitudes extremadas, "de princípio", seriam um doutrinarismo sem sentido. Em uma trecho preciso, Lenin esclarece a posição comunista:

"Todos concordarão que seria insensata e até criminosa a conduta de um exército que não esteja preparado para dominar todos os tipos de armas, todos os meios e processos de luta que o inimigo possui ou possa possuir. Mas isto diz ainda mais à respeito da política do que à arte militar. Em política é ainda menos fácil saber antecipadamente que meio de luta será aplicável e vantajoso para nós em tais ou tais condições futuras. Sem dominar todos os meios de luta podemos sofrer uma derrota enorme - por vezes mesmo decisiva -, se mudanças independentes da nossa vontade na situação das outras classes põem na ordem do dia uma forma de acção na qual somos particularmente fracos. Dominando todos os meios de luta, venceremos seguramente, visto que representamos os interesses da classe realmente avançada, realmente revolucionária, ainda que as circunstâncias não nos permitam por em ação a arma mais perigosa para o inimigo, a arma susceptível de lhe assestar golpes mortais com a maior rapidez. Os revolucionários sem experiência pensam frequentemente que os meios legais de luta são oportunistas, pois a burguesia enganava e mistificava os operários com particular frequência neste terreno, e que os meios ilegais de luta são revolucionários. Mas isto é falso. O que é verdadeiro é que os oportunistas e traidores à classe operária são os partidos e os chefes que não sabem ou não querem (não diga: não posso; digam: não quero) aplicar os meios legais de luta" (2004, p. 333)

Aqui também (2004, p. 314):

"Fazer a guerra para derrubar a burguesia internacional, uma guerra cem vezes mais difícil, prolongada e complexa do que a mais encarniçada das guerras habituais entre Estados, e renunciar nestas condições a manobrar, a aproveitar as contradições de interesses (ainda que temporárias) entre os inimigos, renunciar à conciliação e a compromissos com possíveis aliados(ainda que temporários, instáveis, vacilantes, condicionais), não será isto uma coisa infinitamente ridícula?"

Ou podemos encontrar em Marx (apud MESZAROS, 2002, p. 593)

"Já que o proletariado, durante o período de luta para derrubar a velha sociedade, ainda age com base na velha sociedade e, consequentemente, no interior das formas políticas que pertencem mais ou menos àquela sociedade, durante este período de luta, ele ainda não atinge sua estrutura final, e para realizar sua libertação ele emprega meios que serão depois descartados após a libertação."

Tais pontos conseguem iniciar a polêmica, já que apontam a maioria das discordâncias teóricas e algumas políticas. Faltariam ainda alguns pontos políticos como os organizacionais, por exemplo, mas ao nosso ver podem ser facilmente deduzidos das concepções gerais do anarquismo. Além disso mais a frente, no estudo sobre teoria do Estado/política e alguns estudos de casos exemplificarão os modelos políticos reivindicados pelo anarquismo e suas diferenças com o marxismo.


A insuficiência teórica do anarquismo


As variedades do voluntarismo anarquista de Proudhon a Bakunin, são diametralmente opostos a tal visão [objetiva, do marxismo], já que são incapazes de compreender a pesada dimensão econômica da tarefa [revolucionária]. Elas substituem as condições objetivas pelas suas imagens subjetivas de fervor pela agitação mesmo quando falam sobre a "força das circunstâncias"
Meszáros


Tendo conhecido o terreno de embate entre as duas correntes, se aprofundará mais nos fundamentos teóricos dessa polêmica. O enfoque das críticas à teoria anarquista se limitará à teoria do Estado, talvez o ponto de maior discordância entre comunistas e anarquistas, que envolve um conceito de poder/política e delineia a prática e programa político para a revolução e o socialismo de ambas as correntes. A filosofia do anarquismo poderia em muito colaborar para se compreender as origens de suas posturas políticas, porém não há espaço para aqui para se mergulhar nos embates hegelianos de onde se tiram as inspirações humanistas radicais do anarquismo. Mas se tocará nessa questão rapidamente na crítica à sua "teoria" do Estado, onde podemos ver que o ideal revolucionário anti-alienação radical acaba nivelando elementos de uma anti-teleologia, com pitadas de positivismo, fortemente inspirada pelas críticas de Feuerbach (por quem Marx/Engels também foi influenciado até meados de 1845), com uma teoria política anti-estatal, como a criação do conceito de estatismo em Bakunin, que se opõem ao federalismo, esse estando de acordo com a natureza e propensão teleológica humana, epistemológica e ontológica (veja Mezsáros (2002, p. 577): "O argumento definitivo de Bakunin em favor da abolição imediata do Estado era uma referência à natureza humana, a qual, alegava ele, é tentada pela existência do Estado a perpetuar o domínio da minoria privilegiada sobre a maioria." apenas invertendo assim a teoria liberal do Estado ["geral"]); ou pela apologia do indivíduo/Eu e sua plena liberdade em oposição ao coletivo/exterior. O título de um dos textos mais famosos de Bakunin é exemplar: Deus e o Estado...

Também se excluirá da análise a crítica da economia política, ou teoria econômica, anarquista, por entendê-la como inexistente. 1) Ou se utilizaria nessa questão do monstruoso e eclético trabalho de Proudhon com suas limitações intrínsecas e criticadas por Marx já em Miséria da filosofia. Marx dizia que Proudhon: "comporta-se, em seu escrito, em face de Saint-Simon e Fourier mais ou menos como Feuerbach, em face de Hegel." ou "Proudhon se embaralha em todos os tipos de quimeras, para ele mesmo obscuras, relacionadas com a verdadeira propriedade burguesa, uma vez que o "roubo", enquanto violenta transgressão da propriedade, pressupõe a existência da própria propriedade." - semelhanças com a teoria do Estado [geral] anarquista?. 2) Ou se utilizaria de apropriações desonestas do pensamento marxista pelo anarquismo, que tenta suprir sua deficiente teórica enorme com ecletismo, como é o caso de Bakunin ao traduzir/"concordar" com o Capital e a centralidade do econômico, que dizia "Marx é um pensador econômico muito sério, muito profundo. Ele tem a grande vantagem sobre Proudhon de ser um verdadeiro materialista [... apesar de que]  Proudhon compreendeu e sentiu a liberdade muito melhor do que ele" (sic para o idealismo subjetivista e literário). Bakunin não percebia a contradição já que ali, no Capital e em suas teses econômicas mais gerais, estaria já o materialismo dialética posto em prática teórica e as principais contribuições de Marx para o plano político. 

Por outro lado, não se defenderá que o marxismo possui uma teoria do Estado completa, em contraposição ao anarquismo, muito menos somente em Marx/Engels. Mas diferente do anarquismo, o marxismo, com sua ciência da história, o materialismo histórico, e sua filosofia, o materialismo dialética, e sua vasta experiência revolucionária de massas, possui bases teóricas muito mais completas para a formulação dessa teoria. O esforço do marxismo ocidental italiano, ou francês, nesse sentido, são exemplos de que a continuidade nesse campo teórico se faz necessário e possível dentro do marxismo.

Indo direto ao ponto: o anarquismo possui uma teoria do Estado? Segundo Kurz (2011): "À primeira vista a doutrina anarquista parece ser mais consequente que a teoria de Marx na negação da estatalidade, pelo menos no propósito."

Mas adverte:

"Evidentemente que, por mais bem intencionado que seja o propósito, ele [o propósito] não vale nada, se não lhe corresponder um contexto de fundamentação suficiente que consiga dar-lhe cumprimento. Pode facilmente afirmar-se um impulso anti-estatal ligado visceral e superficialmente às manifestações e experiências negativas (repressão, burocracia, autoritarismo etc.), sem com isso se conseguir um conceito da coisa, que é negada de modo meramente abstracto. Para evitar mal-entendidos: o contrário da negação abstracta não é uma afirmação concreta pseudo-dialéctica, que tivesse “superado” positivamente (como em Hegel) aquela negação abstracta, mas sim uma negação concreta penetrando a própria coisa, a única que será verdadeiramente aniquiladora."

Tomando a obra do grande teórico e fundador do anarquismo, Bakunin, utilizado pela maiorias das correntes anarquistas, o autor conclui que, não há uma satisfatória formulação teórica sobre o Estado em sua teoria já que, em sua principal Estado e Anarquia, por exemplo:

"[Sua] argumentação surpreende desde logo por consistir grandemente em prolixas exposições e conjecturas sobre a política quotidiana, as estratégias e as personagens mais ou menos sujas dos poderes europeus no século XIX. Trata-se sobretudo de uma mistura de “psicologia étnica” vulgar, de arrazoados sobre diversos acontecimentos políticos, bem como de mexericos e intrigas nas sociedades e círculos de emigrantes das cidades capitais. Em vão se procura uma definição conceptual e uma análise da estatalidade; encontram-se apenas asserções não-conceptuais, ataques e declarações retóricas. Bakunin é obviamente tudo menos um teórico, é antes um “político de café”, como Marx o considerava. Tanto mais patético para o anarquismo que ele seja considerado um dos seus mais importantes representantes na crítica do Estado."

E continua:

"A grande questão de uma teoria crítica do Estado, a relação entre capital e estatalidade, nem sequer pode ser seriamente colocada por Bakunin a partir dos seus pressupostos, porque já o conceito de capital é subterrâneo. Para ele a “formação de capital”, que não é objecto de qualquer ulterior definição, consiste essencialmente em “especulação bancária”, e “isso não significa senão o triunfo da dominação judaica (?), da alta finança, com o poderoso apoio do poder financeiro, administrativo e policial”. Para esta “formação de capital” na forma de “especulação bancária, a qual em última instância devora a própria formação de capital”, segundo Bakunin “torna-se necessária a centralização violenta através do Estado… para o seu posterior e completo desenvolvimento”. A estatalidade, portanto, deve consistir desde logo sobretudo em garantir a “dominação judaica” dos especuladores bancários, que são considerados os verdadeiros representantes do capital.  

"Na realidade já basta verificar esta definição anti-semita de capital e de estatalidade para considerar definitivamente impossível a crítica anarquista do Estado. Esta sentença pode ser pronunciada com consciência tanto mais tranquila quanto o segundo pai fundador do anarquismo, Pierre Joseph Proudhon, também reduz o seu conceito de capital ao capital que rende juros, ou seja, à estatalidade, dada a sua reclamação ao poder, e tenta descrever como contraprograma uma apoteose (“cooperativa”) pós-estatal da forma da mercadoria, com uma “moeda do trabalho”."

Ora, de uma maneira geral esse subjetivismo sem embasamento na realidade objetiva, material e econômica já fora apontada, e nisso está a incapacidade do anarquismo enquanto corrente e alternativa política revolucionária. Segundo Kurz:

"Em todas estas exposições desestruturadas de Bakunin não se consegue descobrir nem pouco nem mesmo nada sobre a relação concreta entre estatalidade e capital. Ocasionalmente ainda se sugere que talvez uma classe estatal burocrática em associação (mal explicada) com os banqueiros judeus pudesse desenvolver um interesse próprio de dominação. Judeus, alemães, burguesia, especuladores, agentes do Estado, cabeças coroadas – para Bakunin tudo isto é mais ou menos a mesma “casta de exploradores”. Assim, a pomposamente proclamada “aniquilação de tudo aquilo que se chama Estado” inclui como objectivo seco e abstracto nada mais que uma “autonomia económica”, ignorando completamente qualquer determinação crítica da forma, mas sobretudo a ideia de fundo da democracia vulgar da “completa organização federativa directa de baixo para cima”."

E podemos provar também o subjetivismo, falta de rigor teórico e tendência radicais pequeno burguesas no trecho comentado por Kurz referente à oposição de Bakunin entre o povo eslavo (pré-moderno) e o alemão: Os “eslavos” seriam “dominados por paixões completamente contrárias”, “nunca teriam eles próprios criado um Estado por sua iniciativa”, teriam sido sempre “um povo de camponeses amante da paz”

Sendo assim no anarquismo "faltam as determinações conceptuais elementares" de uma teoria do Estado, e sua busca ou tentativa de continuidade seria inútil já que 1) até mesmo as formulações de juventude de Marx/Engels lhe são superiores, e 2) "para o pensamento anarquista, a mediação d[a] crítica da estatalidade com a crítica da economia política e das suas categorias não é apenas uma consequência não realizada, como em Marx, mas sim uma impossibilidade lógica."

Em contraposição o marxismo possui, e aqui se utilizará do arsenal leninista, um esboço de teoria do Estado mais elaborado e que coaduna com seus objetivos políticas e visão teórica mais ampla, abarcando o mundo da objetividade no processo histórico. Em seguida se organizou algumas teses, na finalidade de aprofundar esse ponto de vista:

- "Comunismo científico vê o Estado como um instrumento de opressão e violência" (BUKHARIN), assim como no anarquismo. 

- O Estado, ou poder político, é "um produto do antagonismo inconciliável das classes" (e não seu produtor) e possui "condições econômicas para seu definhamento" (LENIN, 1978), como de (re)surgimento ("o Estado se tornou uma necessidade" - Engels). O modelo de soviets, ou de democracia federalista, ou mesmo o Comitê Central da Comuna de Paris, na teoria marxista, é considerado ainda um modelo de Estado, por ainda lidar com tomada de decisões e imposição, cumprindo um papel ainda político e não somente técnico. O Estado não é uma formulação maquiavélica da minoria, para está presente como necessidade do desenvolvimento econômico das sociedades.

- A política (o poder político) pressupõe um poder de estado, e este é o objetivo da luta de classes, que seja, organização e poder de decisão sobre produção e outras esferas da vida social de um território e população. Qualquer força militar, por exemplo, exige uma estrutura de Estado-maior, autoridade e organização da força. Mesmo a democracia é uma forma de poder político e tende a "definhar" Lenin (1978, p. 110), e o direito de igualdade é ainda um direito burguês (1978, p. 114). O comunismo seria a superação desse estreito horizonte do jurídico-político que pressupõe um horizonte estatal: da propriedade idividual respaldada em norma jurídica (cada um segundo seu trabalho/contribuição) para propriedade comum (cada um segundo suas necessidades).

- Escapando dos limites liberais exportados pelo anarquismo, o marxismo prevê a possibilidade de uma democracia ditatorial, ou "ditadura da massa" (STALIN, 2006) que é ao mesmo tempo o emprego do estado para quebrar a resistência burguesa passageiro (até que as diferenças de classes seram suprimidas e o Estado entre em curto-circuito) e um modelo de democracia das classes em aliança revolucionária contra seus inimigos em período de luta pelo/manutenção do poder. Ou seja, a famosa ditadura do proletariado. O prolongamento desse período não possui condições de ser efetuado por vontade subjetiva, mas sim por condições e espontaneidade objetivas lentas (continuidade das classes e de sua luta).

- No marxismo, "autoridade e autonomia são questões relativas" (LENIN, 1978, p. 77) e devem se subordinar aos objetivos finais da revolução.

Mas, como dito na introdução desse texto, a derrota do socialismo e dos Estados de tipo leninista não seriam a comprovação das teses anarquistas? Não estaria certo abraçar agora a tese da "destruição [imediata] do capital e Estado"?

A apressada tese anarquista que tenta descartar o marxismo pelas experiências do século XX devem ser pesados com cuidado. Na realidade, ela expressam uma denúncia que caracteriza o anarquismo desde seu início, Kropotkin (apud STALIN, 2006) já falava "sabemos que toda ditadura, por mais honestos que sejam os seus propósitos, conduz à morte da revolução. Sabemos... que a idéia da ditadura não é outra coisa senão um produto pernicioso do fetichismo do governo, que... sempre se esforçou por eternizar a escravidão". Isso tudo deve ser visto de maneira crítica, segundo o marxismo. O surgimento de uma nova burguesia estatal, e a degeneração da ditadura do proletariado, não ocorreram pela existência do Estado em si, como querem os anarquistas, mas de relações capitalistas na economia subjacentes ao âmbito político que se fortaleceram e tornaram predominantes. Apesar de apontar as degenerações, o anarquismo pouco explica a dinâmica desse processo, se limitando a reduzir tudo denuncismo vazio de "os de cima" contra "os de baixo". Já o marxismo afirma que essa degeneração é fruto da derrota no campo da luta de classes, que tem um solo material e internacional: o desenvolvimento das contradições mundialmente resultaram em derrota do socialismo e vitória temporária da propriedade privada.


Segundo Yanowitz (2007) os estudos de historiadores desde a década de 70 tendem a comprovar que os processos revolucionários comunistas que se degeneraram são "more complicated and rich than the standard right-wing inevitable-march-to-totalitarianism version. In its broad outlines, their work confirmed that material conditions, rather than Bolshevik original sin, transformed a mass, popular revolution into its opposite, Stalinism [e posterior revisionismo e restauração capitalista]" Porém os "anarchists continue to maintain that the degeneration of the Russian Revolution was the inevitable result of the Bolsheviks’ authoritarianism.", ou seja aspectos de subjetivos de liderança e programa político.

Como vimos a alternativa anarquista não se embasa numa teoria consolidada, apesar de parecer "correta" na atual conjuntura em vários pontos de denúncia ao marxismo. Mas já vimos o quão limitada e errônea é buscar no anarquismo as respostas pelas deficiências e retrocessos na teoria e prática marxista, por ser uma "teoria" profundamente subjetivista. Ora, o subjetivismo voluntarista anarquista se mostra de maneira mais forte na tese de "destruição do capital e do Estado". Como se estes fossem coisas e não relações provenientes de um determinado modo de produção, os anarquistas pregam o poder do homem sobre aquilo que até então controlam: em um lance individual ou de massas pretende acabar com os fetiches e refazer sua humanidade. Enquanto no comunismo, a existência do Estado capitalista, ou do capital, é fruto da existência de relações capitalistas profundamente arraigadas que geram a classe capitalista, no anarquismo é a existência do Estado ou do capital que irá gerar necessariamente relações capitalistas, não havendo mediações possíveis. A base material se reverte, e é então determinada pelo subjetivo. Assim, no anarquismo, o Estado/Capital não podem nunca fenecer, ou seja, sem que haja um sujeito intervindo diretamente no objeto, este se prolongará: necessidade de um agente subjetivo para realizar, ou como diz Meszáros de um "ato soberano de vontade política arbitrária" (2002, p. 572), e este, continua o autor na próxima página citando Bakunin, poderia ser realizado por poucos "indivíduos devotos, enérgicos e inteligentes [...] para a Europa, uma centena de revolucionários séria e firmimente unida seria o suficiente" (vejam como o voluntarismo extremado se casa paradoxalmente ao espontaneísmo). Enquanto no comunismo, quando as bases objetivas do Estado/Capital são minadas, não há voluntarismo no mundo que os faça acontecer, ou não seria materialista nesse caso. Como diz Bukharin "a ingênua infantilidade deles [dos anarquistas] confunde a essência da coisa com o sua expressão social, histórica, forma externa.", ou como diz Marx: "Bakunin não compreende absolutamente nada de revolução social, apenas de sua retórica política; as condições econômicas simplesmente não existem para ele... O poder da vontade, não as condições econômicas, é a base da revolução social".


O caso ucraniano e espanhol: traições ou tragédias? O anarquismo na prática e sua insuficiência

Comentadas as limitações teóricas do anarquismo e suas divergências com a teoria comunista, vamos à análise da prática.

Sobre a rapidamente derrotada Comuna de Paris, reivindicada por muitos anarquistas como "fim do estado", Engels se questiona apud Lenin (1978, p. 79): "não deveria ela ter se utilizado melhor do poder revolucionário do Estado, isto é, do proletariado armado, organizado como classe dominante?" Para um anarquista isso é um ultraje: 1) pela utilização do Estado, 2) pela noção de proletariado como classe dominante (ditadura democrática popular/do proletariado). Concretamente, dizem os anarquistas, não há como toda uma classe "ser dominante", sempre haverá a minoria com poder versus maioria, e assim a perpetuação do Estado e constituição de uma nova classe. Marx falaria que toda a classe (entendida não empiricamente) estaria no Estado, por ter o poder, ser a classe dominante, e se organizar por organismos de base como Comunas (mesmo que muitos Estados socialistas não terem chegado a tal estado de coisas), ou seja, "ditadura de todo o proletariado como classe", como diz Stalin (2006). Lenin, por sua vez, desmistificaria a dualidade massas x direção como uma vertente do individualismo.

A deficiência do anarquismo em sua utilização aos avessos da teoria liberal do Estado que paira e é causa do mundo social (engendrando classes), o faz condenar a utilização dos aparelhos de Estado, entendido como gerais. A tese de fundo é quem detém o poder político pode deter a produção, o que em parte é verdadeira, porém no anarquismo aparece de forma empírica e formal: nela é detem o poder e é proprietário quem está empiricamente no poder ou tem contato com os aparelhos de Estado, ou não cumpre os mandamentos jurídicos de democratismo que se auto-legitimam. Não há um solo objetivo, é puramente um jogo de forças políticas imediatas que decidem as relações de produção e o caráter da propriedade. Assim, nessa confusão subjetivista, o anarquismo condena o Estado e tem horror a centralização, não possuindo qualquer noção de dialética mediação/superação de conteúdo/forma.

Segundo Kurz (2011): "Marx troça da retórica oca de Bakunin do “vós aí em cima, nós cá em baixo”, ou seja, o postulado da autonomia formal de uma corporação federativa definida de modo igualmente formal: “E na configuração de Bakunin serão (de cima abaixo) todos (de cima)? Não haverá ninguém (de baixo)? Aqui se refere a falta de lógica e o ridículo do democratismo formal, bem como de um conceito de dominação formal e também subjectivo, que esconde sistematicamente as determinações qualitativas decisivas da socialidade.". Sob esse fraco solo se estabelece a crítica e prática anarquista que até hoje resultou em poucos frutos, mas em muitos panfletos. Aceitar a crítica "política" (ou formal?) do anarquismo para com a ditadura do proletariado e da tática e estratégia comunista é retrocesser imensamente e não levar em conta as lições da história.
Vamos enfim a casos concretos históricos propriamente dito para averiguar a alternativa anarquista e sua viabilidade. Dois casos históricos foram escolhidos para estudo do anarquismo e sua proposta na prática. O caso ucraciano (makhnovichina), 1918-1921, e o espanhol (CNT), 1936-39, parecem ser casos mais úteis e atuais, já que os dois se configuram no estágio imperialista do capitalismo e facilmente exemplificam as difíceis condições de um processo revolucionário em tal conjuntura. O debate sobre a Comuna de Paris e seu modelo, grande polêmica entre anarquistas e marxistas rapidamente iniciada aqui, ao nosso entender, estará demonstrado implicitamente, e, já que os casos escolhidos lhe são posteriores, pode-se perceber melhor o acúmulo da prática e teoria do socialista por anos de experiências.

O caso ucraniano, da Makhnovichina, a largos passos foi uma experiência de um exército liderado por Makhno na guerra civil e contra a invasão alemã para a consolidação do poder soviético, posteriormente esmagado pelo exército vermelho. Muitos anarquistas usam o caso como o primeiro movimento de massa liderado por anarquistas, aplicando o federalismo e o anti-estatismo nos campos da Ucrânia, e como exemplar para expor as diferenças do socialismo autoritário (aqui encarnado pelo bolchevismo) e o socialismo democrático, ou libertário. O primeiro sendo um monstro burocrático, uma submissão de novo tipo, e o segundo, o governo dos de baixo. E, como dito acima, é no estatismo dos comunistas que está a principal falência posterior do estado bolchevique e da revolução russa (e não as condições de isolamento, atraso econômico etc.).

"Anarchists continue to maintain that the degeneration of the Russian Revolution was the inevitable result of the Bolsheviks’ authoritarianism. According to their narrative, once in power via a devious coup, the Bolsheviks wasted no time in destroying their opponents, in particular, the anarchists, whom they saw as a threat to their “statist” desires. Anarchists point chiefly to the example of anarchist Nestor Makhno and the Makhnovists in the Ukraine as a positive example of a libertarian alternative to Leninism." (YANOWITZ, 2007)

Segundo um site anarquista (infoshop.org), comentando sobre o movimento makhnovista: "here we have a mass movement operating in the same “exceptional circumstances” as the Bolsheviks, which did not implement the same policies".

As fontes históricas sobre o acontecimento podemos encontrar tanto em publicações bolcheviques sobre o caso ucraniano, assim como escritos de historiadores anarquistas sobre o caso. Archinov é um exemplo de fonte muito usada pelos anarquistas.

Em recente artigo, Yanowitz (2007), que se baseia em grande parte no doutoramento de Colin Darch, tenta desmistificar a lenda utópica da Makhnovichina como movimento "que deu certo" e foi esmagado injustamente pelos bolcheviques. Para o autor, o movimento foi confuso, inconsistente, por vezes aplicando um militarismo tão "autoritário" como os bolcheviques, porém sem o conteúdo revolucionário destes, e sua derrota representa o fracasso da linha anarquista e a pouca coerência dessa corrente.

Makhno foi um ucraniano provindo de origem camponesa pobre que desde cedo se envolveu com círculos anarquistas, sendo preso, mas liberado na revolução de 17 (fevereiro). Começa a se organizar e lutas com suas tropas contra a invasão alemã e contra os brancos. Chamado por seus companheiros de Pai (Batko), seu exército começa a crescer, realizar expropriações e colaborar com os bolcheviques contra a reação. Suas ações também se torna presente uma forte tendência anti-semita, como comprovam algumas fontes. Em seguida as discordâncias com os bolcheviques crescem e começam os embates. Makhno abandona seu comando em 19, morre em 1934, de tuberculose, após ser exilado pelos bolcheviques. Em meados da década de 20 qualquer continuidade do movimento é quase inexistente.

Segundo o autor do artigo:

"The principal texts for the Makhno mythology are, in order of publication, Peter Arshinov, History of the Makhnovist Movement, Voline, The Unknown Revolution, and Alexander Skirda, Nestor Makhno–Anarchy’s Cossack: The Struggle for Free Soviets in the Ukraine 1917–1921.11 These authors rarely offer corroboration for their main arguments, substituting assertions and invective for evidence and reasoning."

Porém, tal literatura anarquista possui fortes fraquezas de comprovação empíricas dos fatos, "events are conflated, chronologies confused, whole periods glossed over, logical jumps made, and excuses offered" segundo Darch apud Yanowitz (2007). Um caso exemplar é a "visita de Makhno a Lenin", texto de Makhno publicado como original,  que segundo o autor não possui evidências, nem em diários de Lenin, ou Sverdlov, ou mesmo em Archinov.

Para Yanowitz, a Makhnovichina surge no momento "certo" do descontentamento camponês: na invasão e ameça Branca por um lado, e no comunismo de guerra por outro, onde o Estado precisava, desesperadamente, pegar forçadamente parte da colheita dos camponeses, que tinham recebido a terra com a revolução. Os bolcheviques não tinham tanta influência com setores camponeses como em setores urbanos. Essa necessidade objetiva do comunismo de guerra se não resolvida significaria fome e arruinamento da revolução. Mas para muitos camponeses, e setores extremistas (e oportunistas) como os anarquistas, significava a ditadura contra o povo. Sob essa base de descontentamento social pequeno burguês de um período urgente que os anarquistas conspiraram e se organizaram contra o Estrado proletário: os camponeses não querendo interferência externa mas sim decidir sua própria (e pequena) produção, individual ou localmente, em seus pequenos territórios. Nela queria construir o seu projeto formal e voluntarista de socialismo.

Atropelando as questões de larga escala da revolução e suas condições objetivas do momento, os makhnovistas pregavam as "comunas livres", e oposição ao Estado soviético, sendo estas propostas totalmente inviáveis de resistirem e perpetuarem a todo o território naquele momento, já que muito menos havia direção preparada para esse processo. Num período ainda de consolidação da revolução, não havia base nem econômica, nem política ou ideológica e dividir as frentes de luta seria apoiar a reação. Mas para os anarquistas, quem fosse contra, ou desconsiderasse a sua parcas e fracassadas experiências políticas e econômicas de direção nas comunas ucranianas do campo, era inimigo da revolução. Ou seja, demonstravam uma total incapacidade e senso político para resolver os problemas da grande produção moderna, o que causou ingerência econômica e anarquia política. "The Makhnovist solution was unworkable: decentralized anarchy to leap over the real problems of production".

Por outro lado, em muitos momentos, segundo o autor respaldado em diversas fontes, o movimento acabou forçadamente criando contornos estatais: forma o próprio exército em si de dura disciplina, "the Makhnovists set monetary policy. They regulated the press. They redistributed land according to specific laws they passed. They organized regional legislative conferences.  They controlled armed detachments to enforce their policies.". Ou seja, ainda permeneceu a existência do poder político, mas segundo os anarquistas, não era um Estado, já que este era de baixo para cima, cumprindo a etiqueta eterna de delegados eleitos. Será? O autor relata semelhanças entre medidas tomadas pelos bolcheviques e por Makhno que, por sinal, tinha o poder de veto no exército, segundo David Footman, que depois de um tempo não mais funcionava por "adesão voluntária" e possuir uma polícia secreta.

O revolucionarismo de emancipação total e imediata aos poucos se corroeu, também pelo abandono do apoio dos camponeses da região: a NEP acaba com a base de apoio componesa e já não havia motivos para se unir com os anarquistas, com o fim da requisição de produção e abertura de mercado. O fracasso dos anarquistas termina em esmagamento militar e mostra que o programa anarquista tem pernas curtas e não casa com o cenário capitalista moderno, sendo uma alternativa inviável em larga escala e facilmente reversível.

Segundo Darch apud Yanowitz (2007) "Historically, anarchism has often been the political expression of resistance adopted by social classes whose position is undermined by the historical trend of their times [...] Anarchists are not so much anti-nationalist as pre-nationalist. They look back to the community that preceded the centralized nation-state. Their future is firmly rooted in an idealized past"

A resposta ao artigo de Yanowitz, pelo administrador do mesmo site anarquista/libertário citado (On the Bolshevik Myth: A Response to the International Socialist Review, disponível em: http://news.infoshop.org/article.php?story=20070607225040457) é um exemplo das pretensões anarquistas para um período de transição, e sua "teoria" correspondente, e de como isso reflete na análise histórica concreta. Utilizando-se de referências anti-soviéticas que poderia muito bem ser aproveitada por anti-comunistas, o nosso administrador preto-vermelho faz 'avassaladoras' críticas à política e forma organizacional-estatal dos bolcheviques da primeira década da revolução que se estendeu na Ucrânia e aponta duas deficiências: de um lado, a estrutura "autoritária-centralista", anti-democrática e burocrática, e anti-'trabalhador', por outro lado à suposta ineficiência dessa máquina. Esquecendo-se das condições concretas que a revolução se encontrava pós guerra civil e intervenção imperialista, o nosso anarquista idealisticamente denuncia o poder bolchevique de privar outros partidos e organizações políticas de se organizarem e propagarem suas ideias, em privilégio de uma burocracia que em nada modificava os velhos aparelhos de estado, e, consequente, geraria uma ineficiência, mismanagement (má-gerenciamento). A análise, apesar de apontar alguns erros reais de burocratização, se limita ao âmbito subjetivo. O administrador do blog chega a dar o exemplo do sistema ferroviário, que com os bolcheviques receberia uma gestão de "uma só pessoa" (sic) e que tiraria a autonomia dos trabalhadores diretos que realmente sabem dos serviços e de seu controle. "Quão errôneo tal modelo! como os trabalhadores poderiam apoiá-los, como poderia estes servi-los?" questiona os anarquistas. As acusações ao bolchevismo, apesar de parecerem políticas e justas, pouco se baseiam em condições concretas (sobretudo de base econômica), de totalidade e de longo prazo: reduz tudo ao imediatismo e ao formalismo quase jurídico, que termina em acusações morais ("traidores dos 'trabalhadores'!") e fracas auto críticas que expliquem as inúmeras derrotas do programa anarquista, mesmo sendo este, sendo seus defensores, o correto e que contempla a verdadeira vontade dos "trabalhadores" (lê-se pequenos camponeses, artesãos, operários e até mesmo setores próximos do lumpensinato) e seus desejos empíricos e imediatos, já que espontaneamente sabem o melhor para si e tem "instintos" revolucionários. O federalismo e autonomismo é idealista e metafísico por não compreender as fortes determinações contra-revolucionária que se estendem em diversos níveis e querer "tudo, já", sendo qualquer mediação, qualquer "passo para trás" como dizia Lenin, uma traição. O marxismo, como teoria experimentada por décadas em experiências vitoriosas de massa, recicla-se com estas e sabe muito bem, por estar na direção destes processos, que o mundo puro da teoria e das motivações éticas populistas pouco ajudam num momento real, pelo contrário: este fanatismo quase religioso de defender as 'causa dos trabalhadores/do povo' pode se tornar contra-revolucionário ao minar as possibilidades de construção socialista seguras, de ampla escala e com pé no chão. Ora, não é por acaso que o anarquismo nunca se consolidou por um período de tempo considerável em nível de massas: a fidelidade com as massas está acima das condições objetivas e institucionais herdadas por outros modos de produção, e também da conjuntura da revolução/contrarevolução. Essa sim, verdadeira ingerência, termina em desorganização da produção e militar, poucos focos "libertos e autônomos" e rápida dizimação por parte da máquina assassina estatal capitalista da reação e do imperialismo. Mas pelo menos morrem sem se sujar com o Estado e fiéis a sua causa quase religiosa e cumprindo as etiquetas inauguradas pela mirrada e derrotada Comuna de Paris.

Para um leninista qualquer manifestação de ética e formalidade deve ser varrida de uma teoria da transição. Não havendo modelos e receitas globais, já que são as forças estruturais de um dado momento histórico que determinam as escolhas políticas, não há como estabelecer uma pura e bela modalidade de democracia operária a ser aplicada sempre (seja no século XVIII/XIX seja no imperialismo), a qualquer momento (seja anterior à vitória militar como no caso da guerra civil espanhola) e a todo lugar (seja país central avançado, seja num país colonial e semi-feudal). A caótica conjuntura do período de guerra civil na Rússia, sobretudo econômica, mas também subjetiva de nível cultural das massas iletradas e ligadas à pequena produção, impossibilitava por exemplo a defesa dos motes de 1917 de total democracia operária, defendidas por esquerdistas "de oposição" até mesmo dentro do partido bolchevique, como Kollontai, ou de teses que se mostraram simplistas como em Estado e Revolução (onde a modernização tende a fazer com que qualquer um pudesse gerenciar o Estado e a produção). O partido ("minoria") não significa necessariamente oposição a vontade da classe, muito menos os detentores do meio de produção. Acima das preocupações imediatas e formais estavam os interesses mais longo prazo de sobrevivência da posse do poder pela classe em muito ameaçados. Para isso, o passo para atrás, a utilização da força estatal contra casos esporádicos de levantes operários, ou retorno de quadros capitalistas, por exemplo não é comprovação empírica de traição ou vergonha: mas sim movimentos objetivamente possíveis, que possuem seus riscos (atraso da revolucionarização das relações de produção que geram o retorno do poder capitalista, como ocorreu), mas que de forma alguma é um efeito imanente, como querem os anarquistas e seu conceito de estatismo, e como pode parecer na conjuntura favorável pós desmoronamento do bloco socialista.

O outro caso de "anarquismo" prático foi em certa medida a guerra civil espanhola e sua maior liderança revolucionária, a CNT (anarcosindicalista), que hegemonizava o campo da esqueda à época. Segundo Hobsbawm (2003, p. 74) o país foi "o único no qual o anarquismo continuou a ser uma força importante no movimento operário depois da grande depressão". Na guerra civil, os republicanos, onde se encontravam os anarquistas, foram derrotados pelos nacionalistas. O primeiro grupo formado por forças democráticas e de esquerda (frente popular) contra os rebeldes militares ultra reacionários (nacionalistas), recebeu apoio soviético e das brigadas internacionais, sobretudo militar, além de boicote das nações imperialistas "não-intervencionistas", como é o caso inglês. O segundo foi apoiado pelos fascistas e nazistas e detinham superioridade militar.

Para os anarquistas e trotskistas, a derrota dos republicanos é culpa da política frentista e etapista do Comitern, comandada pela nomenklatura stalinista à época. Sem a política reacionária soviética, a revolução socialista teria triunfado e os trabalhadores, independentes da linha soviética/republicana seguida dos "reformistas" da CNT, que já vinham tomado a produção em vários pontos e detido os nacionalistas em muitas regiões, assumiriam o poder completo.

Normalmente as análises terminam aí. O sentimento nostálgico e de traição tomam conta. Mais uma vez, pouco se avalia sobre as condições objetivas e materiais da possibilidade de triunfo de uma revolução ou da correlação de forças internacionais e objetivos  mais amplos e não imediatos do proletariado mundial. Reduz-se tudo ao campo subjetivo ou militar de um povo se rebelendo e as direções os contendo e os levando a derrota certeira.

Para os comunistas a vitória militar sobre as forças reacionários, possível a partir de uma frente popular com setores progressistas e unidade da esquerda, era primordial e primeiro passo para qualquer processo de transição socialista. Arriscar sob este ponto seria perder possíveis alianças, atropelar o processo e dar vitória à reação. Num país atrasado como a Espanha, poucas eram as perspectivas de desenvolvimento, que dificultavam as condições para a permanência de um poder socialista. Além disso, a vitória da revolução deveria ser vista em sua relação com as nações já socialistas, e subordinar seus objetivos particulares aos maiores do socialismo como um todo, que se encontrava em difícil conjuntura diplomática com o avanço do nazi-fascismo e a vista grossa das democracias ocidentais. Não havia espaço para heroísmos ou políticas vanguardistas por parte do movimento comunista, já que estas eram perigosas e poderiam colocar a perder as conquistas e o terreno já alcançados na guerra contra o imperialismo há muito iniciada.

No caso espanhol, novamente vemos predominar, junto ao subjetivismo radical anarquista, que não prevê mediações, a paranóia empírica e formal: qualquer medidas que fossem contra os interesses imediatos de trabalhadores em casos concretos, ou não aplicasse o modelo federalismo desde início era vista como reacionária ou traidora. O exemplo desse modelo é a oposição anarquista à CNT, liderada por Durriti (anarquista "progressista" por criticar pelo menos o anti-autoritarismo infantil da CNT), que denunciavam a frente popular/anti-fascista e a participação de "verdadeiros revolucionários" e da CNT nela (ora essa não era a política de 28-34 do Comitern, que impossibilitou uma frente que enterrasse a monarquia e os setores ligados a ela?). Segundo essa oposição anarquista, era preciso romper com qualquer compromisso ou aliança com a burguesia ou outros países, já que estas só levaria a derrota para os trabalhadores: estava na política classista a única chance de vitória. E a derrota se resumiria mais na "traição" do que nas forças inimigas. Ora, havia condições para tal linha (construção imediata de poder popular anti-estatal)? Ela se confirmou como correta? A quem as massas responderam com apoio?

Os comunistas sabiam das limitações tanto da direção anarquista quanto das condições subjetivas e objetivas da Espanha para realização e sobrevivência de uma revolução socialista. Levando em consideração não só o fervor revolucionário das massas, ou a fidelidade com a causa do povo, os comunistas não buscaram juntar todas as etapas para a emancipação da classe num só golpe, como defendia os Amigos de Durriti e demais extremistas, mas sim a consolidação da hegemonia proletária que pressupunha uma frente popular, o apoio internacional e anti-fascista de todo o tipo. Tendo visão de longo prazo, os comunistas não se perdiam no imediato/empírico de pequenos casos e não tinham medo de pesar o menos pior, fazer alianças táticas e realização de etapas objetivamente possíveis que caminhassem seguramente a favor da revolução mundial já iniciada.

Mas o encanto das brigadas sempre foi muito forte, até mesmo para os comunistas. Para Hobsbawm (2003, p. 92) "custou vinte anos até que estivesse preparado para ver no anarquismo espanhol algo mais que uma trágica farsa".

Tomando como base a obra monumental do historiador Raymond Carr sobre a Espanha, Hobsbawm afirma que os antecedentes da guerra civil, que a podem explicar melhor, foi a fracassada modernização do país, tanto econômica quanto política e culturalmente. Tais fracassos abriram uma configuração única na Europa Ocidental do século XIX/XX, que colaboravam com explosões populares, sobretudo provindas do campo e de caráter mais ou menos provinciano, mas que também dificultavam suas vitórias, dependendo dos caminhos tomados por elas. E a revolução espanhola, como se viu na guerra civil, que no século XX vinha tomando corpo a partir do movimento operário e da revolução camponesa hegemonizados pelos anarquistas (anarco-sindicalistas) não conseguiu vencer suas adversidades, não só por causa da força do inimigo, mas por sua falta de força e organização própria. A linha política errônea liderada pelos anarquistas mais atrapalhou que ajudou.

O anarquismo na Espanha, assim como na Ucrânia, pouco modificou o caráter de revolução primitiva das revoltas camponesas e provincianas. Ao contrário, foi uma nova faceta destas, sendo uma expressão do arcaico atraso estrutural da Espanha em todos os setores. Os anarquistas não representavam o programa e uma vanguarda proletário. Essa fraqueza não se configura apenas no nível técnico, mas também político, e acabou transformando a política "em uma forma de ginástica moral, uma exibição de devoção, sacrifício, heroísmo ou aperfeiçoamento tanto individual como coletivo que justifica sua incapacidade para atingir quaisquer resultados concretos" (2003, p. 84), beirando a religiosidade popular e desperdiçando oportunidades políticas concretas. A queima de igrejas e outros atos "libertários" quase teatrais são exemplos clássicos do anarquismo espanhol. Embora revolucionários e muito entusiasmantes, os anarquistas espanhóis não foram uma alternativa nacional concreta e acabaram derrotados.

Infelizmente, "os comunistas, cuja política era a única suscetível de conduzir à vitória na guerra, se fortaleceram demasiado tarde e nunca superaram satisfatoriamente a desvantagem de sua falta de apoio de massas inicial". Não se pode especular sobre o que aconteceria depois da vitória militar, mas pode-se arriscar a dizer que se a influência danosa do anarquista não fosse hegemônica desde o início da guerra civil, haveria mais possibilidade de vitória contra os nacionalistas, mesmo que esta não tivesse um caráter tão revolucionário, mas pelo menos progressista. Sem a vitória militar não havia possibilidade alguma de resistir os pequenos focos de "sovietização" e autogestão dos trabalhadores, como defendiam vários anarquistas. Os anarquistas descartaram, e continuam a descartar em sua crítica, experiências de aliança nacional em países e conjunturas atrasadas que manteram hegemonia proletária e acabaram numa revolução socialista, como Vietnã, China, Iugoslávia etc. Segundo Hobsbawm (2003, p. 88) "uma revolução pode se estabelecer durante um período mais prolongado de conflitos aparentemente complexos e obscuros através da combinação de uma aliança entre classes razoavelmente estável com certas sólidas bases regionais de poder". Mas o purismo anarquista que gera dispersão, confusão, muito voluntarismo e resultados insignificativos, prevaleceu na Espanha e o resultado já sabemos.


O anarquismo como sintoma


Em minha opnião, o anarquismo não tem qualquer contribuição significativa a fazer à teoria socialista, embora seja um elemento crítico útil.
Hobsbawm
 
Além de sintoma da crise do comunismo, podemos também entender a utilidade do anarquismo como sintoma dos perigos em relação aos aparelhos de estado e de seu risco de não definhamento. Como no caso ocorrido na URSS, e sua mistura de Partido (governo) com instâncias estatais, que se autonomizaram das decisões das massas e tornou cada vez mais crítica a situação política a partir da década de 30. Porém, esta utilidade não é completa, já que não explica o fenômeno da burocratização e da contra revolução "de veludo" já que posui uma "teoria" do estado cheia de buracos e equívocos, sem desenvolvimento consistentes e práticas de direção de processos revolucionários consolidados, e que pouco relaciona as relações políticas e de produção com a esfera das forças produtivas e correlação de forças internacionais, fatores objetivos em muito superiores em determinação histórica do que erros ou desvios políticos e pessoais que escapam de um formalismo apriorista de organização política socialista.

As aproximações com o trotskismo, outro "sintoma" da crise do comunismo, aqui são imensas (nem se fala dos "auto-gestionários" "marxistas", irmãos gêmeos do anarquismo). Mesmo o trotskismo, corrente sem firmeza teórica, por se basear na linha oportunista de Trotski em sua "variadíssima" vida política, se baseiando no obreirismo esquerdista de tipo operário e economicista com contornos estatistas fortemente militaristas (vide o debate Lenin-Trotsky sobre sindicatos), e por isso aparentar ser o oposto do federalismo espontaneísta do anarquismo, ambos se fazem de um subjetivismo na teoria da história e tendem a culpar, por exemplo, o "stalinismo" ou a "nomenklatura" pela deterioração do socialismo do século XX. A aproximação também se mostra política já que ambas negam qualquer tipo de aliança com qualquer outra "classe" (comparação um pouco grosseira, já que no anarquismo, como vimos há uma falta de historicidade e rigorosidade sociológica de definição de classe no anarquismo), entendendo toda mediação ou desvio da revolução puramente de caráter socialista uma traição por excelência. E uma terceira aproximação possível e consequente das anteriores é o constante sentimendo de corrente injustiçada pelas perseguições por parte das direções estatais de um processo revolucionário como o soviético (ora, será que estes esperavam uma convenção ou tratado de ética numa guerra revolucionário? a morte e captura dos vermelhos pelos negros na ucrânia também não possuíam um postulado ético...)

Sendo assim, pode-se importar para o anarquismo o título de corrente política "racionalista [política e histórica]" dado por Merleau-Ponty ao trotskismo em 'Humanismo e Terror', ou de "metafísica revestida de boas intenções" definição dada por Sartre em 'Os comunistas e a paz', pelo doutrinarismo ortodoxo de tal corrente, que procura situações e contradições puras e se pauta por aspectos formais, sendo incapaz de se modificar em situações de liderança revolucionária, identificar contradições (e aliados) particulares, e assim alcançar vitórias de longo prazo e em larga escala, ou seja, pela falta de uma teoria materialista de transição e de método dialético. Correntes com tais características tendem a morrer na história por isolamento, esperando a construção do socialismo que cumpra a etiqueta de ser 100%, empírico e formalmente confirmado, construído por baixo. Porém morrerão fiéis ao seu romantismo e motivação ética-estética, agremiando de vez em quando revolucionários sinceros com boa vontade em demasia. Ora, e não seria mesmo o caminho do inferno pavimentado por essa boa vontade?


Conclusão


Nenhuma dose de simpatia [para com o anarquismo] pode alterar o fato de que ele, como movimento revolucionário, tenha sido ideado quase para o fracasso.
Hobsbawm


Muitos aspectos foram deixados de fora tanto teóricos quanto políticos e práticos nesse embate com o anarquismo. Porém alguns apontamentos finais podem ser traçados.

O papel principal na atual e completa crise do movimento comunista é a conquista ideológica da vanguarda proletária, que se encontra "perdida". Sem esta influência firme, a maioria dos esforços políticos revolucionários se tornam vãos, e outras ideologias e teorias insuficientes se farão presentes na direção dos processos revolucionários, como talvez o anarquismo mais ou menos puro, estando estes fadados ao fracasso a médio e longo prazo.

Concorda-se com Bukharin, de maneira conclusiva de que "os anarquistas têm um papel positivo para fazer o trabalho de destruição do Estado da burguesia, mas, no termo orgânico, eles são incapazes de criarem um “novo mundo” e por outro lado, uma vez o proletariado tendo tomado o poder, quando a mais urgente tarefa é construir o socialismo, então o anarquista tem quase exclusivamente papel negativo, molestando tal construção ativo com imprudentes e desorganizadas ações."

O anarquismo se mostra uma prejudicial corrente que pode entrar em moda por um longo período na atual conjuntura anti-comunista. Por isso é dever dos comunistas a disputa teórica e ideológica constante, a crítica sincera, aliada a uma auto crítica, buscando nos níveis de luta política e ideológica denunciar o radicalismo do esquerdismo, mas sem esquecer também do oportunismo reformista, e atrair com isso os setores descontentes e educá-los para uma prática política verdadeiramente comunista. Essa dupla tarefa não se cumprirá no isolamento, mas na busca aliados táticos e progressistas. Nem se cumprirá denegrindo os "concorrentes", já que "a coisa importante, para os trabalhadores é entender o que é pernicioso em seus ensinamentos e a origem de sua prática nociva [do anarquismo]" (BUKHARIN).

É uma árdua tarefa, e falta em grande sentido estrutura organizacional para tal. Mas entregar os pontos por completo seria uma derrota anunciada. Sabendo das limitações que nos encontramos em tal contexto de refluxo, é preciso atuar nas frentes que forem possíveis e escapando dos desperdícios voluntaristas.


Apêndice: Lenin e Mao, voluntarismo marxista?

As noções de "política no comando", "as massas fazem a história" ou "fora o poder tudo é ilusão", que ilustram bem a prática leninista e maoísta seriam voluntaristas, por colocar em momentos decisivos o aspecto subjetivo em primeiro plano na história, onde o erro seria "esperar" (as revoluções burguesas, os países centrais etc.)? Zizek é um autor que em vários de seus textos tenta demonstrar Lenin, e também Mao (Em defesa das causas perdidas, por exemplo), como o sujeitos de ruptura por excelência, que descartam as garantias objetivas ou a legitimidade pré-estabelecida e arriscam no "salto para o abismo". Segundo o autor, "este é o Lenin que ainda temos o que aprender" (2005, p. 10).

Tal reflexão pode ficar para outro momento. Mas, é de se adiar que, o "voluntarismo" marxista, embasado em uma teoria revolucionária consistente, de muito difere do voluntarismo anarquista e nunca se expressou da mesma forma. As propostas de Lenin e Mao decorriam de momentos históricos precisos e profundamente analisados (correlação de classes nacionais e internacionais, nível das forças produtivas, estágio do capitalismo em questão) e nunca somente de um pretexto de vontade política populista e panfletária. Muitas vezes a linha "voluntarista" eram exigências específicas, para cumprimento de tarefas políticas provenientes de brechas históricas únicas; ou simplesmente faziam e fazem parte de um modelo de agitação das massas eficiente e necessário, nem sempre permanentes tanto em teoria quanto em política. Como diz Hobsbawm (2003, p. 94) "uma dose de voluntarismo (em certos momentos) é particularmente salutar". 

Além disso essa linha "voluntarista" marxista não se casa nunca com o espontaneísmo, comum à visão de massas com instintos conciliáveis às visões estratégicas da vanguarda dos anarquistas: a noção de revolucionarização ideológica das massas no leninismo ou maoismo é um exemplo de divergência, onde a consciência revolucionária não se encontra em estado "adormecido", mas sim precisa ser (re)inventada. Outro exemplo claro é o caso de Lenin e o seu abandono realista de algumas pré-revolução e a percepção de que somente com a vontade políticas das massas não modificariam o profundo atraso da estrutura política, econômica e ideológica da continental Rússia àquela época. 

Segundo Zizek (2005), esses passos de avanço ("voluntarista") e recuo (posturas políticas mais realistas) é que demonstram "o refinado senso dialético de Lenin", onde a exceção momentânea se torna a possibilidade de mudar a regra, e que, sendo assim, se justifica o tomar a história pelas próprias mãos, para desestabilizá-la. Por causa dessa dialética peculiar e diferente da anarquista "Lenin não é um 'subjetivista' voluntarista'" (ZIZEK, 2005, p. 14), já que no final das contas se garante a primazia das estruturas objetivas. Como se vê também em Stalin (2006) esse "jogo" dialético: "a evolução prepara a revolução e cria o terreno para ela; e a revolução coroa a evolução e contribui para prosseguir a obra desta."

Talvez o esforço de Zizek, assim como de outros "pós-marxistas" em uma reconstrução de uma teoria do sujeito político, precise se utilizar muito mais de alegorias do que de uma análise histórica concreta e conceitos rigorosos. Logo, o voluntarismo em tais fontes possui um sentido muito diverso do empregado do debate político corrente da esquerda.




Referências:


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BUKHARIN, Nikolai. Anarquia e comunismo científico. (1922) Disponível em: http://www.pco.org.br/biblioteca/socialista/autores/bukharin/textos/anarquia.htm. Acesso em: 9 mar. 2012.
HOBSBAWM, Eric. Revolucionários: ensaios contemporâneos. (1973). 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.
KURZ, Robert. Não há Leviatã que nos salve: teses para uma teoria crítica do Estado. Segunda parte. (2011) Disponível em: http://o-beco.planetaclix.pt/rkurz396.htm. Acesso em: 09 mar. 2012.
LENIN, Vladmir. Esquerdismo, doença infantil do comunismo. In.:______. Obras escolhidas III. 2. ed. São Paulo: Alfa-Ômega, 2004.
_____. O Estado e a revolução. São Paulo: Hucitec, 1978.
MÉSZAROS, Istvan. Para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2002. 
STALIN, Josef. Anarquismo ou Socialismo? (1907). 2006. Disponível em: http://www.marxists.org/portugues/stalin/1907/anarquismo/index.htm. Acesso em: 09 mar. 2012.
YANOWITZ, Jason. The Makhno Myth.  Anarchists in the Russian Revolution. in: International Socialist Review. May–June 2007. Disponível em: http://www.isreview.org/issues/53/makhno.shtml. Acesso em: 09 mat. 2012.
ZIZEK, Slavoj. Às portas da revolução. São Paulo: Boitempo, 2005.