domingo, 3 de fevereiro de 2013

Progressismo na música: duas (semi)homenagens a Marighlella


Marighella: entre a difamação e a glória deturpada


Quando a hegemania cultural é da reação, como hoje em dia, é comum a esquerda ficar alegre, muitas vezes de maneira totalmente acrítica, com qualquer furo nesse acachapante cenário. Fica alegre e reivindica para si, sem nenhuma ponderação qualquer heróico esforço de se contrapor ao status vigente. Muitos riscos moram por aí.

Nessa virada de ano vivenciamos na mídia e na vida cultural do país um retorno do rosto mais odiado da ditadura: o de Marighella. Não é por menos, final de 2011 representou o centenário do internacionalmente conhecido comunista brasileiro. Foi lançado um filme Isa Grinspum Ferraz [1], sobrinha do revolucionário, narrado pelo grande ator Lázaro Ramos; um livro Marighella - O guerrilheiro que incendiou o mundo, de Mário Magalhães [2]; uma música/clipe dos Racionais MC's, Mil faces de um homem leal, presente no filme de Isa [3] e que marca o retorno à ativa do maior grupo de rap da história do país; e uma música, mais recente, do dúbio artista Caetano Veloso, Um comunista, que integra seu mais recente álbum "Abraçaço" [4]. Além de outras atividades culturais e políticas de menor impacto na "opinião pública".

Quem foi Marighella, a quem interssa sua "fama"?

A mobilização popular no período de "redemocratização" do país obrigou constar na história oficial a heróica batalha de lutadores que pegaram em armas para defender seu país. Dentre eles Marighella. Mesmo que esse processo ainda não tenha, nem de longe se completado, só ver a fachada da Comissão de Verdade e Justiça tutelada pelo governo federal [5], ou tenha sido menor e menos expressivo, se comparado a outros países da America Latina que sofreram com as ditaduras fantoches do capital estrangeiro, o fato é que conseguiu-se minar, pelo menos para o povo, a legitimidade do terrorismo de estado daquela época.

O monopólio midiático, as forças armadas e diversos outros setores e aparelhos de Estado e das classes dominantes, obviamente, tentam constantemente difamar essa memória, apagar a verdade ou "relativizá-la" desse período histórico de intensa luta de classes em nosso país e no mundo. Um exemplo é o discurso liberal "anti-totalitarismo" que tenta igualar, de maneira ridícula, a violência dos "terroristas de esquerda" com o terror estatal-militar. Esquecem de ver, por exemplo, a maneira como era tratados os prisioneiros de guerra dos dois lados para ver o quão "igual" foi!

Essa ameaça de difamação é constante, e tem ganhado, infelizmente, força nos últimos anos, junto com a reorganização do setor conservador.

Isso mostra que a luta pela memória é uma disputa contínua, uma das facetas da luta de classes. Por isso é importante defender nossos lutadores de toda e qualquer falácia ou ataque. Independente do viés ideológico e da luta política devemos lembrar que nossos mortos são nossos mortos.

Porém o inimigo também pode fazer seu serviço de maneira indireta, não explicitamente. Essa é a forma mais perigosa de ataque e que mais arrasta incautos.

Marighella, de fato, foi o "inimigo nº 1 da ditadura". Um militante revolucionário extraordinário, experiente, que estava disposto, como mostrou na prática, de dar sua vida pela causa do povo brasileiro e da revolução. Mas será que sua fama, mostrado como paradigma de luta contra a ditadura, de alguma forma indireta, favorece o inimigo?

Como se sabe, Marighella e sua organização ALN, foram fortemente influenciadas pelo foquismo, retirando de maneira errônea lição da experiência cubana e sua importação mecânica. Sua saída do imobilismo do velho PC foi em direção a uma linha política extremamente militarismo, de menosprezo da teoria, da política e das massas. A ALN era uma organização de ação, visava a guerrilha urbana como soma de forças para uma guerrilha rural. As armas controlava a política, e não a política as armas. Um erro fatal.

A falência dessa linha para o proletariado e as classes trabalhadoras ficou clara em nosso país. A repressão cirúrgica do regime extirpou durante anos do país organizações revolucionárias. Eliminou-se os quadros revolucionários, eliminou-se tudo. Isso podemos incluir até mesmo uma experiência que tentou escapar do foquismo, a guerrilha do araguaia, como ficou conhecida, liderada pela reconstrução do PC no nosso país.

"Se for para fortalecer uma linha política revolucionária, que seja a errada, mais confusão e esforços inúteis serão espalhados", "pensa" o inimigo (ou pelo menos, é a lógica de seu ataque ideológico). Por isso, de certa forma, a imagem personalista de Marighella e de sua linha política incorreta são um deserviço ao verdadeiro balanço que os revolucionários devem fazer de sua luta histórica e nacional. Isso, fique claro, de forma alguma retira a importância de Marighella, sua luta, sua organização. Como dito, estão do nosso lado, e devemos defendê-la. Porém, também não podemos dispensar a auto-crítica e cair na armadilha ingênua da reação fantasiada. Junto com nossa defesa, devemos levantar nossa crítica e outras organizações "apagadas" (intencionalmente) da fama, que aplicaram políticas mais justas, e tentaram superar o foquismo, o imobilismo de direita e o sindicalismo trotskista. De toda a derrota sofrida na ditadura o que mais devemos aprender é: sem partido e sem teoria revolucioária, a classe, mesmo com quadros armados naquele momento, está desarmada e não conseguirá realizar sua tarefa histórica.

Duas (semi)homenagens a Marighella: um desvio lumpen, um desvio pequeno burguês, ou duas faces da mesma moeda

Se vimos que nem toda reivindicação faz um serviço à nossa memória e à causa, que essa pode servir sim a um deserviço, vamos a dois exemplos práticos, sobre a imagem de Marighella: a música/clipe dos Racionais e a música de Caetano.

Como dito no início do texto, a esquerda cai nos cavalos de tróia do inimigo muitas vezes, pois acata acriticamente o que lhe vem aparentemente como progressista. E realmente caiu nesse caso. Apresentaremos uma breve análise crítica para evidenciar essa afirmação.

Música/Clipe da música dos Racionais:

Letra de Mil faces de um homem leal

A postos para o seu general, Mil faces de um homem leal (2x)/  Protetor das multidões/ Encarnações de célebres malandros/ De cérebros brilhantes/ Reuniram-se no cé/u O destino de um fiel, se é o céu o que Deus quer/ Tô somado, é o que é, assim foi escrito/ Mártir, Mito ou Maldito sonhador/ Bandido da minha cor/ Um novo messias/ Se o povo domina ou não/ Se poucos sabiam ler/ E eu morrer em vão/ Leso e louco sem saber/ Coisas do Brasil, super-herói, mulato/ Defensor dos fracos, assaltante nato(!)/ Ouçam, é foto e é fato a planos cruéis/ Tramam 30 fariseus contra Moisés, morô/ Reaja ao revés, seja alvo de inveja Irmão,/ esquina de velas pra cima de um rebelde/ Que ousou lutar, honrou a raça/ Honrou a causa que adotou,/ Aplauso é pra poucos/ Revolução no Brasil tem um nome/ Vejam o homem/ Sei que esse era um homem também/ A imagem e o gesto/ Lutar por amor/ Indigesto como o sequestro do embaixador / O resto é flor, se tem festa eu vou/ Eu peço, leia os meus versos, e o protesto é show/ Presta atenção que o sucesso em excesso é cão/ Que se habilita a lutar, fome grita horrível/ A todo ouvido sensível que evita escutar/ Acredita lutar, quanto custa ligar? /Cidade chama vida que esvai/ Clama por socorro, quem ouvirá? /Crianças, velhos e cachorros sem temor /Clara meu eterno amor, sara minhas dores /Pra não dizer que eu não falei das flores / Da Bahia de São Salvador Brasil /Capoeira mata um mata mil, porque /Me fez hábil como um cão /Sábio como um monge/ Antirreflexo de longe/ Homem complexo sim /Confesso que queria /Ver Davi matar Golias /Nos trevos e cancelas /Becos e vielas /Guetos e favelas/ Quero ver você trocar de igual/ Subir os degraus, precipício /Ê vida difícil, ô povo feliz / Quem samba fica, /Quem não samba, camba /Chegou, salve geral da mansão dos bamba /Não se faz revolução sem um fuga na mão /Sem justiça não há paz, é escravidão/ Revolução no Brasil tem um nome/ A postos para o seu general/ Mil faces de um homem leal (2x)  Marighella / Essa noite em São Paulo um anjo vai morrer /Por mim, por você, por ter coragem em dizer.*

*Em negrito queremos destacar certas aproximações do ideário lumpen. Já o sublinhado quer demonstrar os desvios personalistas.

Percebemos que a música, de sagazes melodia e letra, é uma homenagem a um homem corajoso que ousou lutar contra as injustiças do país e o regime que as sustentava. Tenta mostrar que esse homem brotou da cultura brasileira, era também um homem comum, dividia uma vida em comum. Sua defesa é a defesa de nossa honra.

As imagens que usa diversas vezes são oriundas de um certo misticismo/teologismo (vide as comparações com figuras bíblicas) e também da vida marginalizada do país (chega chamar Marighella de "malandro", assautante nato!). O clipe também faz referências sobretudo ao segundo aspecto. Há cenas que os membros do grupo estão em vielas escuras de favelas, portando armas, em supostas "ações revolucionárias". Eis um duplo desvio ideológico: o personalismo, que desliga Marughella das massas, de sua organização, de seu período histórico, para virar um homem que "faz história" com as próprias mãos, um super-homem; outro, a estetização da pobreza, claramente pequeno-burguês, de identificar na pobreza, na miséria, a força contra o sistema. Para o velho Marx, os Racionais ainda acreditam que são os lázaros do proletariado que são a tropa de choque da revolução, e não elementos de forte propensão reacionária.

Muita confusão para uma criativa homenagem. Mas o deserviço está feito: aqueles conservadores que comparam as expropriações de grupos revolucionários a meros assaltos, a luta política com o crime (e o contrário da mesma moeda, aqueles que acham que o crime é uma "resistência política"), agradecem; aqueles que tentam mostrar que a revolução é um golpe dado por intelectuais e grandes homens que enganam uma população ignorante, também.


Música de Cateano Veloso (e banda Cê):

Letra de Um comunista

Um mulato baiano,/ Muito alto e mulato/ Filho de um italiano/ E de uma preta hauçá/  Foi aprendendo a ler /Olhando mundo à volta /E prestando atenção /No que não estava a vista /Assim nasce um comunista / Um mulato baiano /Que morreu em São Paulo/ Baleado por homens do poder militar/ Nas feições que ganhou em solo americano /A dita guerra fria /Roma, França e Bahia / Os comunistas guardavam sonhos/ Os comunistas! Os comunistas! / O mulato baiano, mini e manual /Do guerrilheiro urbano que foi preso por Vargas /Depois por Magalhães /Por fim, pelos milicos /Sempre foi perseguido nas minúcias das pistas/ Como são os comunistas? / Não que os seus inimigos / Estivessem lutando / Contra as nações terror / Que o comunismo urdia / Mas por vãos interesses/ De poder e dinheiro / Quase sempre por menos/ Quase nunca por mais/  Os comunistas guardavam sonhos / Os comunistas! Os comunistas! / O baiano morreu / Eu estava no exílio / E mandei um recado: "eu que tinha morrido" / E que ele estava vivo, / Mas ninguém entendia / Vida sem utopia Não entendo que exista/ Assim fala um comunista  /Porém, a raça humana /Segue trágica, sempre /Indecodificável /Tédio, horror, maravilha / Ó, mulato baiano /Samba o reverencia /Muito embora não creia/ Em violência e guerrilha /Tédio, horror e maravilha / Calçadões encardidos /Multidões apodrecem /Há um abismo entre homens /E homens, o horror / Quem e como fará /Com que a terra se acenda? /E desate seus nós /Discutindo-se Clara /Iemanjá, Maria, Iara Iansã, /Catijaçara / O mulato baiano já não obedecia /As ordens de interesse que vinham de Moscou / Era luta romântica/ Era luz e era treva /Vento de maravilha, de tédio e de horror / Os comunistas guardavam sonhos /Os comunistas! os comunistas!

*Sublinhado frases "anti-comunistas", negrito apoio tácito e confuso "à causa".

Caetano é um artista dos mais perdidos ideologicamente da história contemporânea do país. Por vezes vem com uma crítica social, um certo anti-conservadorismo. Outras vezes, um anti-comunismo atroz. Essa música só refoça.

A música não vem com a estética feroz dos Racionais. É quase um rock minimalista, um tanto melancólico, nostálgico. Mas a letra também tende a prestar uma homenagem, contar a história, quase literal (e mais completa e contextualizada que na música dos Racionais), das ações de um grande homem. Só que fixa bem esse homem e seus sonhos no passado. Caetano abraça, ceticamente, a "democracia" como verdadeiramente fim da história. Defende Marighella, mas muito mais para se diferenciar dos conservadores, parar gerar polêmica pela polêmica, coisa que sempre gosta de fazer.

No fim da "guerra fria", Caetano lançou uma música com um viés ideológico bem semalhante. "Os outros romanticos" [6] , de 1989, é uma música destinada aos comunistas, que ele chama de românticos, como no caso de Marighella, homens com motivações subjetivas e utópicas que se chocam com a negra natureza humana, imutável, e o mundo muito mais complexo que seus pobres esquemas. O mundo não foi feito para ser mudado, e qualquer afirmação contrária é uma violência, um retorno ao obscurantismo totalitário: eis a tese de fundo. No final da música faz uma referência hegeliana, comparando o marxismo a uma profecia, uma escatologia. Aqui a letra completa:

Eram os outros românticos, no escuro /Cultuavam outra idade média, situada no futuro /Não no passado /Sendo incapazes de acompanhar /A baba Babel de economias/ As mil teorias da economia/ Recitadas na televisão/ Tais irredutíveis ateus /Simularam uma religião /E o espírito era o sexo de Pixote, então/ Na voz de algum cantor de rock alemão /Com o ódio aos que mataram Pixote a mão/ Nutriam a rebeldia e a revolução/  E os trinta milhões de meninos abandonados do Brasil /Com seus peitos crescendo, seus paus crescendo/ E os primeiros mênstruos /Compunham as visões dos seus vitrais/ E seus apocalipses mais totais /E suas utopias radicais / Anjos sobre Berlim "O mundo desde o fim"/ E no entanto era um SIM /E foi e era e é e será sim.

Mais uma vez, muita confusão. A versão quase lumpen "radicalista" se assemelha com a versão pequeno burguesa desiludida. Duas faces da mesma moeda, dois desvios com origem em comum e final semelhantes.

Críticas exageradas?

De fato é difícil imaginar, em meio a uma correnteza tão forte do hegemônico, uma nova forma de cultura, que não guiadas pelas imagens de ações individuais, mistificadas ou não. Ainda é um caminho longo a ser percorrido, impossível sem mudança das bases sociais. De fato, as homenagens encerram um certo progressismo, é inegável. Um progressismo possível, dentro dessa realidade concreta. Porém, não sem contradições a serem superadas, como tentamos demonstrar aqui.

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[1] http://itaucinemas.com.br/filme/marighella
[2] http://www.youtube.com/watch?v=AOwddBi7u-o
[3] http://www.youtube.com/watch?v=G-OFK14m6s0
[4] http://www.youtube.com/watch?v=otiZAYPP200
[5]http://www.faccamp.br/letramento/2012/1sem/oficina4/consuelo_dieguez_conciliaCAo_de_novo_piaui64.pdf / ou http://www.anovademocracia.com.br/no-96/4259-comissao-da-meia-verdade-se-arrasta-
[6] http://www.youtube.com/watch?v=EVgP4398kdY

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