quinta-feira, 28 de março de 2013

O Segundo Réquiem para Gullar


Publicamos abaixo texto produzido pelo Blog Cem Flores.

O poeta de esquerda "arrependido": um prato cheio para o monopólio midiático reacionário de "tempos democráticos"



O último poema de O Vil Metal chama-se Réquiem para Gullar[1]. No ano passado,  após mais de meio século, Ferreira Gullar fez publicar seu segundo réquiem. Enquanto no primeiro exercia o seu ofício, neste último a poesia sai de cena. Aquele que já se definiu “poeta político” (Omissão, B) agora renega a si mesmo, abandona a esperança e a luta, capitula e trai.

Para que não pensem que exageramos, transcrevemos abaixo os principais trechos dessa fúnebre (não) poesia de Gullar. Pretendemos, em seguida, analisar cada um desses pontos à luz, principalmente, da própria poesia de Gullar e, assim, completar seu obituário. Nesses dias de trocas de papas, podemos voltar ao velho latim e dizer: Requiescat in pace!

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Entrevista de Ferreira Gullar nas páginas amarelas da Veja, em 26.09.2012, piores trechos:

O capitalismo é forte porque é instintivo. ... O capitalismo não é uma teoria. Ele nasceu da necessidade real da sociedade e dos instintos do ser humano. Por isso ele é invencível.
A força que torna o capitalismo invencível vem dessa origem natural indiscutível. Agora mesmo, enquanto falamos, há milhões de pessoas inventando maneiras novas de ganhar dinheiro.

O capitalismo é uma fatalidade, não tem saída. Ele produz desigualdade e exploração. A natureza é injusta. A justiça é uma invenção humana. Um nasce inteligente e o outro burro. Um nasce inteligente, o outro aleijado. Quem quer corrigir essa injustiça somos nós. A capacidade criativa do capitalismo é fundamental para a sociedade se desenvolver, para a solução da desigualdade, porque é só a produção da riqueza que resolve isso. A função do estado é impedir que o capitalismo leve a exploração ao nível que ele quer levar.

O que está errado é achar, como Marx diz, que quem produza riqueza é o trabalhador e o capitalista só o explora. É bobagem. Sem a empresa, não existe riqueza. Um depende do outro. O empresário é um intelectual que, em vez de escrever poesias, monta empresas. É um criador, um indivíduo que faz coisas novas.
A visão de que só um lado produz riqueza e o outro só explora é radical, sectária, primária.” (negritos nossos)[2]

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Como pode um antigo militante comunista dizer essas bobagens ridículas, expressões de rendição de classe? Avancemos uma primeira hipótese, que condiz com nossa tese dessa entrevista como um réquiem, a partir da própria poesia do ex-poeta:

Foi-se formando/a meu lado/um outro/que é mais Gullar do que eu/que se apossou do que vi/do que fiz/do que era meu/e pelo país/flutua/livre da morte/e do morto” (O Duplo, PI).

Se descartarmos essa hipótese poética de um duplo, de um impostor que tenha tomado o lugar do velho Gullar (e pilhérias a parte), a explicação mais plausível para sua impostura deve estar baseada no próprio fenômeno que funda uma sociedade dividida em classes antagônicas, que a perpassa de cima a baixo, e define os rumos da prática, da teoria e da ideologia de cada classe nessa sociedade: a luta de classes.

O recuo e a traição de Gullar podem ser explicados (nunca justificados!) como efeitos do próprio recuo da classe operária na luta de classes contra a burguesia nas últimas décadas. Efeitos das ausências de uma firme posição revolucionária entre as massas e do seu partido comunista na sociedade brasileira atual. Efeitos do recuo relativo da teoria marxista no país. Só que esses efeitos, para o segundo réquiem de Gullar,já se mostram um tanto quanto defasados, pois tanto a conjuntura mundial quanto a conjuntura nacional da luta de classes já apontam para uma retomada da luta de massas, o que tende a levar em seu bojo a retomadas tanto da teoria marxista quanto de sua organização revolucionária.

A própria e necessária ligação entre luta de classes e posição política não era desconhecida do antigo poeta:

Meu povo e meu poema crescem juntos” (Meu Povo, Meu Poema, DNV).

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Vamos analisar agora, brevemente, as principais teses do segundo réquiem.

Primeira tese de Ferreira Gullar: o capitalismo como tendo “origem natural”. O capitalismo como fruto “dos instintos do ser humano”. Passagem de “natural” para final, “invencível”. Fim da história.

Ao abandonar a posição proletária e revolucionária, Gullar abandona o materialismo histórico e, com isso, regride às formulações ideológicas das classes dominantes, utilizadas para justificar a dominação de classe da burguesia. Para esta, nada melhor do que apresentar o capitalismo – e assim justificar sua exploração sobre a grande maioria da população – como algo natural e espontâneo, porém de acordo com a natureza, com uma pseudo-essência, do ser humano. Dessa forma, o capitalismo vira o fim da história ou, nas palavras de Gullar, um sistema “invencível”.

Nada mais distante, porém, da realidade do que essa caricatura ideológica.

O capitalismo, ao contrário de ser de “origem natural”, é um modo de produção historicamente determinado com o objetivo de produzir e reproduzir não apenas as condições materiais de existência, mas também as relações de dominação e exploração de classe que lhe são características.

Isso quer dizer que a constituição do modo de produção capitalista, tal qual do feudalismo e do escravismo, dependeu de uma série de fatores concretos, contingentes porém cumulativos (políticos, sociais, tecnológicos, etc.), ocorridos em determinado e longo período histórico. Essa transição do feudalismo ao capitalismo nada teve de necessária, imanente, caracterização típica de quem, à “esquerda” ou à direita, professa diversas “filosofias da história”, com sua sucessão pré-determinada e teleológica de momentos que culminariam com a realização da “essência” do homem.

Da mesma forma, o capitalismo não é a realização dos “instintos do ser humano” – supondo que tais instintos existam além da herança evolucionária que compartilhamos com os demais seres vivos (resumidos de forma geral nas buscas pela sobrevivência e pela reprodução) – sejam eles quais forem. O importante é explicitar que nesta frase de Gullar se resume a impostura ideológica do liberalismo burguês: criar um indivíduo representativo de todos, ignorando as divisões da sociedade em classes, e associar este indivíduo ao burguês. Porém atenção: não se trata aqui do burguês real, egoísta, explorador e sedento de lucro, mas de um burguês ideologicamente idealizado, um poço de virtudes.

Virtudes essas ressaltadas e condensadas nas belas e genéricas declarações de princípios, necessariamente ideológicas, da burguesia, tais como as dos pais do liberalismo inglês, ou dos direitos do homem e do cidadão da grande Revolução Francesa, ou ainda o Bill of rights da Revolução Americana, até os mais recentes estatutos da ONU ou a “constituição cidadã” brasileira. Trata-se, no entanto, de submetê-las ao confronto da realidade concreta. A realidade concreta da opressão do imperialismo inglês sobre os povos coloniais do mundo todo até meados do século passado e dos bairros proletários denunciados por Charles Dickens e Jack London. A realidade concreta da opressão sobre os miseráveis e os mineiros franceses, denunciadas por Victor Hugo e Émile Zola no século XIX, das condições de vida nos banlieues da Paris atual às tropas colonizadoras que oprimem os povos do mundo aos acordes da Marselhesa. A realidade concreta do secular escravismo americano substituído por um apartheid em que se enforcavam negros aos aplausos da multidão branca nas southern trees denunciadas por Billie Holiday, da miséria espalhada pelas depressões do século XX, retratada por John Steinbeck, e do século XXI, ainda à espera de autor, às políticas do big stick que se mantêm de Theodore Roosevelt a Obama. A realidade concreta dos sempre negados direitos à autodeterminação dos povos diante das “intervenções humanitárias” das grandes potências imperialistas. E a realidade concreta do nosso conhecido país da jabuticaba, das Vidas Secas de Graciliano à Cidade de Deus de Paulo Lins e aos Domingos Sem Deus de Luiz Ruffato, e uma das maiores desigualdades sociais do mundo, para usar esse eufemismo estatístico.

Portanto, o capitalismo não só não é algo “natural” sendo, pelo contrário, historicamente determinado, como não realiza “instinto” humano algum, inclusive porque não só não há esse “instinto” humano, como não há, tampouco, esse indivíduo humano representativo de todas as classes no capitalismo.

Mas que o capitalismo não é uma sociedade homogênea, mas dividida em classes, isso o velho poeta já sabia:

a noite ocidental obscenamente acesa/sobre meu país dividido em classes” (Madrugada, DNV).

Tiradas, assim, suas premissas, já cairia por terra a ridícula hipótese de um capitalismo “invencível”. Mas achamos que cabe acrescentar, ainda, dois pontos adicionais. O primeiro é que não é possível a quem quer que seja, nem a este outro Gullar, ignorar a dimensão da atual crise do capitalismo, da crise da economia mundial, do imperialismo. Crises que vem se sucedendo umas as outras de maneira crescente e generalizada. Crise que, ao ampliar desmesuradamente o nível de exploração sobre as classes trabalhadoras, está fazendo crescer a reação dessas mesmas classes dominadas contra o sistema de dominação.

O segundo ponto é que uma premissa implícita da tese da invencibilidade do capitalismo em Gullar é que ela restaria provada pela queda das tentativas socialistas do século XX. Mais uma vez, o ex-poeta vê tudo ao avesso. As gloriosas e bem sucedidas experiências de derrubada revolucionária do capitalismo, bem como as primeiras tentativas de construção do socialismo na União Soviética, na China, no Vietnã, em Cuba e tantos outros lugares, são lições imprescindíveis, nos seus acertos e nos seus erros, à geração atual de comunistas. Sabemos, agora, quais erros evitar e quais lições desenvolver.

Segunda tese de Ferreira Gullar: o capitalismo como solução para a desigualdade que ele próprio cria, amplia e reproduz. A “capacidade criativa do capitalismo é fundamental para a sociedade se desenvolver, para a solução da desigualdade”. A “produção da riqueza” no capitalismo.

Mais uma vez, defrontamo-nos com a mais simples e caricata ideologia burguesa. O capitalismo é apresentado como o regime de produção de riqueza ao qual bastaria uma melhor regulação, um maior controle estatal, uma legislação mais apropriada ou quem sabe, uma maior consciência dos capitalistas, para que haja uma distribuição menos desigual dessa riqueza. Como criticou Lênin, um capitalismo asseadinho.

E note bem: uma distribuição menos desigual de riqueza seria tudo ao que o proletariado e as demais classes dominadas poderiam almejar. Como diz este Gullar, essas classes são aquelas que nascem “burras”, nascem “aleijadas”. E a riqueza seria criada pelas empresas, da qual dependeriam os operários. Essa matriz ideológica burguesa é compartilhada por todos os matizes de reformismo e revisionismo, tanto em suas infrutíferas tentativas de criar um capitalismo organizado, asseadinho, quanto nas suas ações para paralisar a classe operária e moderar suas reivindicações.

Mas comecemos a desmontar essa ideologia pelo seu começo. Em que base ocorre a produção de riqueza no capitalismo? O materialismo histórico nos apresenta de forma cabal que é o trabalho humano que transforma os valores de uso disponíveis na natureza, tornando-os apropriados às satisfações das necessidades humanas.

No capitalismo, no entanto, este trabalho humano adquire uma característica bastante específica. É o trabalho daquelas classes que não detêm nem os meios de produção nem as condições de garantir sua própria subsistência. Sua única maneira de subsistir é vender sua força de trabalho à classe possuidora dos meios de produção, detentora do capital. E aqui a maravilhosa descoberta científica de Marx, desnudando a raiz da exploração capitalista: ao produzir uma quantidade de riqueza que supera o valor de sua força de trabalho vendida ao capitalista, essa riqueza excedente, a mais-valia, é apropriada integralmente pelo capitalista, sem equivalente. A riqueza capitalista resume-se, toda ela, à apropriação do trabalho não pago das classes trabalhadoras.

E isso pode ser traduzido em termos poéticos. Mais uma vez, nos socorramos do antigo poeta Ferreira Gullar. E não de qualquer poema, mas de seu poema mais famoso, o Poema Sujo, escrito em meados dos anos 1970 na Argentina, onde o então poeta estava exilado.

O que ficam fazendo os proletários, Gullar?

trabalhando para o dono – como disse/Marx” (PS).

E o que é a vida proletária, poeta?

miséria dos homens/escravos de outros” (PS).

Uma década antes, isso já lhe estava suficientemente claro:

Trabalhava noite e dia/nas terras do fazendeiro./Mal dormia, mal comia,/mal recebia dinheiro;/se recebia não dava/pra acender o candeeiro./João não sabia como/fugir desse cativeiro” (João Boa-Morte Cabra Marcado Pra Morrer, RC).

Ao invés das loas atuais ao capitalismo e sua pseudo-capacidade de distribuir riqueza, ao invés de se deixar festejar pela burguesia brasileira, nosso antigo poeta sabia e enfrentava a dura realidade do país com sua poesia:

Façam a festa/cantem e dancem/que eu faço o poema duro/o poema-murro/sujo/como a miséria brasileira
poema/que não toca no rádio/que o povo não cantará/(mas que nasce dele)
Obsceno/como o salário de um trabalhador aposentado/o poema/terá o destino dos que habitam o lado escuro do país/ – e espreitam.” (Poema Obsceno, VD)

Terceira tese de Ferreira Gullar: no capitalismo quem produz as riquezas são os capitalistas e os operários conjuntamente, “um depende do outro”. “O empresário é um intelectual que, em vez de escrever poesias, monta empresas”.

O branco açúcar que adoçará meu café/nesta manhã de Ipanema/não foi produzido por mim/ ... /e tampouco o fez o dono da usina/ ... /Em lugares distantes, onde não há hospital/nem escola,/homens que não sabem ler e morrem/aos vinte e sete anos/plantaram e colheram a cana/que viraria açúcar” (O Açúcar, DNV).

Não é necessário nada além do soco no estômago que é essa poesia para demolir a patética tese da “co-dependência” entre o trabalhador e o “empresário-intelectual-poeta” (sic!).

Mas vejamos esse ponto com um pouco mais de detalhe. Este atual duplo de Gullar, este impostor, afirma que, ao invés do que escrevia antes, a produção de riqueza se dá por “milhões de pessoas inventando maneiras novas de ganhar dinheiro”, pois o burguês “é um intelectual que, em vez de escrever poesias, monta empresas”. Que a burguesia passa todo o seu tempo se beneficiando das maneiras velhas de ganhar dinheiro ou inventando maneiras novas para isso é sua própria definição enquanto classe. O que Gullar não diz (pois a Veja poderia não gostar), mas que é seu sinônimo, é que para isso, a burguesia passa todo o seu tempo se beneficiando das maneiras velhas de explorar os trabalhadores ou inventando maneiras novas de realizar essa exploração. Quem diz capitalismo, diz exploração de classe.

O que o capitalista tem é apenas o dinheiro, o capital. É esse capital que ele põe em funcionamento contratando trabalhadores para gerarem a mais-valia que é por ele apropriada. Ao capitalista, o que interessa é a produção de um valor maior do que o que dispunha inicialmente, tanto faz produzindo açúcar ou cocaína, chips de computador ou armas.

Isso é tão óbvio que até o nosso Zé Molesta já o sabia:

A verdade é muito simples/e eu vou logo lhe contar./Você não quer liberdade,/você deseja é lucrar. Você faz qualquer negócio/desde que possa ganhar:/vende canhões a Somoza,/aviões a Salazar,/arma a Alemanha e Formosa/pro mercado assegurar” (Peleja de Zé Molesta com Tio Sam, RC).

Esquecido de sua vida anterior, o que o novo Gullar parece ainda acreditar é nos velhos mitos das “robinsonadas”, do pequeno capitalista individual movido a uma ideia na cabeça e algum dinheiro no bolso. Algo como um Steve Jobs. O que ele “esqueceu” é que para transformar essas idéias em produtos vendáveis, mercadorias, o capitalista cai fora e o trabalho é feito pelos operários. Esqueceu que o sucesso do Steve Jobs é baseado em milhares de operários chineses presos em fábricas militarizadas, nas quais se faz apenas trabalhar (muito), comer e dormir (pouco) a troco de salários irrisórios. Lá como aqui e em qualquer lugar, no entanto, a exploração capitalista encontra seu limite na reação operária. Lá como aqui e em qualquer lugar, a luta dos operários limita, na medida de sua organização e disposição de luta, um avanço maior da exploração, aumenta os salários (ainda irrisórios) e conquista melhores condições de trabalho.

No tempo em que ele ainda sabia dessas coisas, ele as chamava pelo nome. Não mais um “empresário-intelectual-poeta”, mas os grandes monopólios imperialistas:

Que o tempo é pouco/e ai estão o Chase Bank,/a IT & T, a Bond and Share,/a Wilson, a Hanna, a Anderson Clayton,/e sabe-se lá quantos outros/braços do polvo a nos sugar a vida/e a bolsa” (Homem Comum, DNV).

E também a própria classe dominante brasileira não era poupada:

Latifúndios com nome de gente, famílias/com nome de empresas” (Dois Poemas Chilenos, DNV).

E ainda vem esse ex-poeta criticar suas antigas posições como “radical, sectária, primária”! Primárias são as teses que se derivam do senso comum, que expressam a ideologia dominante. Como vimos, não é outra coisa que Gullar faz durante toda a entrevista-réquiem. Sectário é não se abrir ao debate, à discussão, à crítica. O marxismo sempre foi, desde Marx, o oposto a isso. Não é por outra razão que nosso blog chama-se Cem Flores (http://cemflores.blogspot.com.br/). Por fim, como dizia o jovem Marx, ser radical é tomar as coisas pela raiz, o que no caso se traduz em desvendar e denunciar os mecanismos encobertos da exploração capitalista e desnudar a ideologia burguesa que a justifica[3].

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À guisa de conclusão, dois comentários.

Ao contrário do que propõem tanto a entrevista-réquiem de Gullar quanto a ofensiva ideológica da classe dominante na atual crise do imperialismo, o capitalismo não é o fim da civilização, o fim da história. Pelo contrário, na atualidade há crescentes indícios de aumento das lutas de massa (passeatas, greves, manifestações, ocupações, greves gerais, etc.) e de retomada do marxismo. Por certo partindo de patamares recuados, mas iniciando a contra ofensiva das classes dominadas.

E como nosso velho “poeta político” já sabia, quando essa luta avança...

Um grave acontecimento está sendo esperado por todos/Os banqueiros os capitães de indústria os fazendeiros/ricos dormem mal. ... Um grave acontecimento/está sendo esperado/e nem Deus e nem a polícia/poderiam evitá-lo” (A Espera, VD)

A poesia/quando chega/não respeita nada./ ... /E promete incendiar o país” (Subversiva, VD)

Onde está/a poesia? Indaga-se/por toda parte ... /poesia/paixão/revolução” (A Poesia, DNV).

E como último e triste comentário, parece que enfim concretizou-se na vida do poeta a sua própria poesia:

é a morte que te chama/É tua própria história/reduzida ao inventário de escombros/no avesso do dia/e não mais esperança/de uma vida melhor?/que se passa, poeta?/adiaste o futuro? ” (Omissão, B).

O morto está morto” (Glauber Morto, B).




[1] Neste texto, todas as citações da obra poética de Ferreira Gullar foram feitas de acordo com a edição de sua Poesia Completa, Teatro e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. Dá-se o nome do poema citado e indica-se o livro no qual foi publicado pelas suas iniciais: VM (O Vil Metal, 1954-60), RC (Romances de Cordel, 1962-67), DNV (Dentro da Noite Veloz, 1962-75), PS (Poema Sujo, 1975), VD (Na Vertigem do Dia, 1975-80), B (Barulhos, 1980-87) e PI (Poemas Inéditos, 1948-2006).
[2]Veja, 26 de setembro de 2012. O texto integral está disponível no sítio do filósofo e poeta Antonio Cícero, que o qualifica de brilhante (sic!): http://antoniocicero.blogspot.com.br/2012/10/ferreira-gullar-entevista-revista-veja.html.
[3] Faltou-nos comentar uma afirmação de Gullar, a de que a “função do estado é impedir que o capitalismo leve a exploração ao nível que ele quer levar”. Para a avaliação marxista sobre o papel do Estado no capitalismo e para uma análise do comportamento recente do Estado brasileiro, remetemos ao nosso artigo “O Estado brasileiro em ação. Como o Comitê Central da Burguesia decide as medidas de política econômica e as determina aos atuais prepostos Dilma e Mantega” (http://cemflores.blogspot.com.br/2012/07/como-o-comite-central-da-burguesia.html). 

quinta-feira, 7 de março de 2013

Viva todas as lutadoras do povo! Viva o Dia Internacional da Mulher Trabalhadora!

"as mulheres trabalhadoras não são apenas uma reserva. Elas podem e devem tornar-se — com uma política justa da classe operária — um verdadeiro exército que combaterá a burguesia. Fazer desta reserva de mulheres trabalhadoras um exército de operárias e camponesas combatendo ao lado do grande exército do proletariado, eis a segunda tarefa, que é decisiva, da classe operária"

Stalin sobre as mulheres trabalhadoras




Em homenagem ao dia 8 de março, reproduzimos um artigo do grupo página vermelha (Portugal), disponível também no link: http://www.paginavermelha.org/noticias/090309-metade-do-ceu.htm.

As mulheres detém metade do céu – isso já foi mais que um sonho
9 de Março de 2009. Serviço Noticioso Um Mundo A Ganhar.

«Temos orgulho em participar
na industrialização do país»

Poster chinês 1954
Pouco depois da revolução chinesa em 1949, novas leis deram às mulheres um estatuto legal igual e os plenos direitos que lhes tinham sido negados nos dias em que os imperialistas, os seus aliados capitalistas locais e os proprietários feudais governavam o país. As novas leis puseram fim aos casamentos infantis e forçados, deram às mulheres o direito a divorciarem-se e o direito à terra, para que deixassem de ser propriedade dos homens sob qualquer forma. A libertação de um grande número de mulheres da prostituição é outro exemplo das grandes mudanças concretizadas quase do dia para a noite.

Mas Mao Tsé-tung compreendeu que o salto da igualdade formal perante a lei para a total emancipação das mulheres de tudo o que as oprimia enquanto sexo desigual requeria uma luta árdua e prolongada – e que, sem isso, a revolução não poderia entrar na via da superação de todas as marcas da opressão e da exploração deixadas pela velha sociedade e que, em vez disso, instalaria o capitalismo. A revolução, à medida que se desenvolvia e que as mulheres participavam na criação de uma nova sociedade, teria não só que transformar as relações sociais e económicas tradicionais que oprimiam as mulheres mas também as instituições sociais e os valores e o pensamento das pessoas. Com a sua famosa frase «As mulheres detém metade do céu», Mao e os revolucionários chineses estavam a proclamar que não podia haver nenhuma emancipação da humanidade sem a participação e a emancipação de metade da sociedade – as suas mulheres.

Reimprimimos aqui excertos de três livros sobre as mulheres na China revolucionária que mostram os impressionantes passos rumo à libertação das mulheres naquele que era então um dos países mais atrasados do mundo. Estes passos apenas podem ocorrer quando o proletariado, a classe cuja própria libertação requer a libertação da humanidade de todas as formas de exploração, detiver o poder de estado. Estes relatos também mostram o poderoso papel que as mulheres podem desempenhar no avanço desse processo. A realidade dos feitos da China socialista dá um vislumbre do que se pode conseguir no futuro, quando a ditadura revolucionária do proletariado for de novo estabelecida num ou mais países, como parte do processo de criação do comunismo, um mundo finalmente livre de classes e divisões de classe e das instituições e do pensamento que são o fruto da sociedade de classes.

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No livro Fanshen, Um Documentário sobre a Revolução numa Aldeia Chinesa (Vintage Books, 1966), William Hinton escreveu sobre o campo nos 

Uma mulher mostra como tinham que amarrar os pés antes da Revolução, para os manterem muito pequenos
primeiros tempos da revolução chinesa, quando o velho domínio feudal e as suas instituições e costumes estavam a ser derrubados pela primeira vez. Ele descreve casos típicos de esposas agredidas por irem a reuniões nocturnas da Associação de Mulheres. As mulheres membros da Associação organizavam reuniões para todas as mulheres da aldeia e chamavam o marido ou o sogro para que se defendesse publicamente das acusações feitas pela mulher ou pela nora. Se ele se recusasse a responder, muitas vezes elas davam-lhe uma tareia para lhe mostrar que a partir daí as coisas seriam diferentes e que seria melhor que ele deixasse de abusar da mulher quando estivesse a sós com ela. O comité de mulheres estaria presente, sempre atento e pronto a intervir de novo se necessário. Hinton escreveu:

«Entre as que foram espancadas estava a mulher do camponês pobre Man-ts'ang. Quando ela regressou a casa vinda de uma reunião da Associação de Mulheres, o marido bateu-lhe como de costume, gritando: ‘Vou-te ensinar a ficares em casa. Vou-te mudar os teus maus hábitos.’ Mas a mulher de Man-ts'ang surpreendeu o seu amo e senhor. Em vez de, depois disso, ficar em casa como mercadoria obediente, no dia seguinte dirigiu-se à secretária da Associação de Mulheres, a mulher do miliciano Ta-hung, e fez uma queixa contra o marido. Depois, numa discussão com os membros do comité executivo, a secretária convocou uma reunião das mulheres de toda a aldeia. Pelo menos um terço, talvez mesmo metade delas, compareceram. À frente dessa concentração sem precedentes de mulheres decididas, foi exigido a Man-ts'ang que explicasse os seus actos. Man-ts'ang, arrogante e insubmisso, concordou prontamente: Disse que tinha batido na mulher porque ela tinha ido às reuniões e que ‘a única razão por que as mulheres vão a reuniões é para terem 

A caminho do trabalho nos campos
liberdade para namorar e seduzir’.
Esse comentário suscitou um furioso protesto das mulheres reunidas perante ele. As palavras rapidamente levaram aos actos. Elas precipitaram-se de todos os lados sobre ele, derrubaram-no, pontapearam-no, rasgaram-lhe as roupas, arranharam-lhe a cara, puxaram-lhe o cabelo e sovaram-no até ele já não conseguir respirar.

«‘Vais bater-lhe? Vais bater-lhe e caluniar-nos a todas? É melhor violares a tua mãe. Talvez isto te ensine.’»
«‘Parem, eu nunca mais lhe vou bater’, gritou ofegante o marido apavorado que estava à beira de desmaiar devido aos golpes delas.»
«Elas pararam, deixaram-no levantar-se e mandaram-no para casa com um aviso – quando tocasse de novo na mulher com um dedo, receberia mais do mesmo ‘remédio’.»
«Desse dia em diante, Man-ts'ang nunca mais ousou bater na mulher dele e a partir desse dia a mulher passou a ser conhecida em toda a aldeia pelo seu nome de solteira, Ch'eng Ai-lien, em vez de simplesmente pelo título de mulher de Man-ts'ang, como era costume desde o início dos tempos.»

***
O Grande Salto em Frente, iniciado em 1958, trouxe as mulheres para fora de casa e para o torvelinho da batalha pela criação de uma nova sociedade na produção, na política, na cultura e noutras frentes. As Comunas Populares criadas como forma colectiva de propriedade e de governo nos campos trouxeram os refeitórios comunitários, os infantários, as reparações domésticas cooperativas e outras coisas que não só aumentaram o bem-estar dos camponeses como também começaram a libertar as mulheres da reclusão familiar, fornecendo soluções colectivas às necessidades sociais que formalmente caiam apenas sobre os ombros das mulheres. Isso tornou ainda mais fácil a sua participação na criação de novas fábricas e em projectos de irrigação e a representação de um maior papel na política e noutros campos.
Houve resistência a esse processo por parte daqueles que no Partido Comunista queriam fazer parar a revolução com a modernização da China e o desenvolvimento do capitalismo, uma sociedade em que a igualdade formal de todos os indivíduos esconde verdadeiras desigualdades, opressão e exploração. Em vez de ser um bastião da luta 

As mulheres rurais passaram de camponesas isoladas a trabalhadoras industriais, como estas operárias da indústria electrónica
mundial pelo comunismo, eles queriam vender o país e o seu povo ao sistema capitalista mundial.
Foi por isso que Mao desencadeou a Revolução Cultural, uma grande luta de inúmeros milhões de pessoas para dar um novo e maior salto na via socialista. A luta entre as duas vias no partido e na sociedade chinesa manteve-se durante uma década. Por fim, após a morte de Mao em 1976, os «seguidores da via capitalista no partido», sobre quem Mao tinha feito um aviso, conseguiram fazer um golpe militar, prender a liderança revolucionária do partido e começar a fazer da China aquilo que é hoje – uma enorme fonte de lucro para o capitalismo globalizado e uma vez mais um lugar onde as necessidades da humanidade não contam para nada e um inferno especial para as raparigas e as mulheres.

O livro Some of Us, Chinese Women Growing Up in the Mao Era [Algumas de Nós, Mulheres Chinesas que Cresceram na Época de Mao] (editado por Xueping Zhong, Wang Zheng e Bai Di; Rugers University Press, 2001) fornece relatos individuais de mulheres chinesas (que agora vivem e ensinam nos EUA) das memórias da sua participação na Revolução Cultural e da sua experiência de «jovens educadas» que desciam aos campos para trabalharem com os camponeses. Em geral, elas consideram esse período como muito positivo e não exprimem nenhum pesar – uma refutação daquilo a que um dos editores chama a actual «narrativa da idade das trevas» sobre a Revolução Cultural e a «loucura de Mao». Os editores e as autoras salientam que as memórias da época de Mao na China são necessariamente


diversas e dependem da perspectiva de classe e do contexto social. Os pontos de vista das conhecidas «memórias de sofrimento» são veementemente contestadas por estas jovens educadas, agora mais velhas «jovens não arrependidas», que narram como saíram do ambiente urbano para irem trabalhar com os camponeses e ajudarem a vencer o enorme fosso económico, social e intelectual entre as cidades e os campos.

Nesse livro, elas querem saber: «Que experiências e que memórias contam para a história»? Embora tenham as suas próprias críticas a fazer, elas insistem em que as profundas mudanças sociais para as mulheres e as subsequentes contradições que foram desencadeadas pela revolução e pelas políticas de Mao para a igualdade de género e as tentativas de eliminar a disparidade entre as condições rurais e urbanas requerem mais investigação. Quando andavam na escola, elas não sentiam nenhum estigma enquanto mulheres. Estas jovens assumiram voluntariamente o seu papel no fermento revolucionário. Uma das autoras comenta que o facto de as jovens serem treinadas para cheerleaders [chefes de claque] no Ocidente deve ser considerado uma forma de lavagem ideológica ao cérebro em termos da posição da mulher na sociedade e proclama quão afortunada se sente por, em vez disso, ter sido «lavada ao cérebro para se tornar uma revolucionária».

Nesse excerto de Algumas de Nós, Naiha Zhang descreve os laços íntimos que ela criou com duas mulheres camponesas da sua idade e como se sentia honrada por poder trabalhar no campo. Ela salienta a atmosfera de «poder fazer» em que as mulheres eram encorajadas a desempenhar um papel activo e muitas vezes de liderança – e o faziam.

«Tanto Guirong como Lifeng se salientaram entre os seus pares. Guirong, um ano mais velha que eu, era a dirigente da Federação de Mulheres da Brigada. Lifeng, um ano mais nova, era líder da equipa de mulheres da sua aldeia. Ambas eram hábeis no trabalho do campo e nas agulhas. Guirong parecia frágil mas era conhecida pela sua destreza na agricultura, que aprendeu com o seu tio, um mestre 

Os refeitórios comunitários nas quintas socialistas ajudaram a acabar com a escravidão doméstica
agricultor. Observá-la a trabalhar o sorgo era um regalo. Nas suas mãos, a enxada de cabo longo movia-se com uma elevada eficiência e precisão, alguns golpes ágeis e secos limpavam o sorgo. Nunca havia um movimento desperdiçado ou redundante. Era igualmente uma entendida na colheita do sorgo, um outro trabalho agrícola que distinguia os camponeses ao nível da sua perícia. Ela era rápida, mas extraordinariamente calma e graciosa, deixando para trás pequenos pacotes de sorgo com a mesma forma exacta e os mesmos intervalos, criando um padrão bem desenhado se visto da extremidade do campo...»

«Dissemos frequentemente umas às outras que devia ter havido algum tipo de sorte que nos juntou e nos manteve unidas. Após um ano na estação experimental da brigada, fomos transferidas para o pequeno pomar da brigada, sendo eu a responsável. O pomar situava-se numa encosta próxima da aldeia de Guirong, com uma casa térrea de dois quartos donde se avistavam filas de pequenas árvores chinesas de maçã-caranguejo com folhas em forma de pêra. Tínhamos três bois e um antigo carro com rodas de madeira. Cultivávamos pequenos produtos, como feijões e legumes, entre as pequenas árvores de fruta. Depois de trabalharmos no pomar da brigada durante um ano, a comuna quis estabelecer uma quinta agrícola experimental na zona da comuna, comigo como sua dirigente. Disse aos dirigentes da comuna que queria que Guirong e Lifeng fossem comigo e eles concordaram vivamente. Permanecemos juntas com uma dúzia de outras pessoas – camponeses de várias brigadas e alguns zhiqing (jovens urbanos que iam para os campos) locais – até que três anos depois deixei os campos para ir para a universidade, em 1977...»

«Juntas, nós as três fizemos todo o tipo de trabalhos – um dos mais fatigantes foi atirar lama e fazer o telhado de uma casa... Tudo isto pode sugerir que passámos tempos difíceis. Sim, passámos por muitas dificuldades e suportámos sofrimentos, mas, globalmente, éramos felizes. Nessa altura, todas as organizações ou projectos tinham que ser auto-suficientes. Tínhamos de nos auto-sustentarmos antes de podermos ter dinheiro para fazermos experiências ou outras tarefas. Tínhamos orgulho em que, em resultado dos nossos esforços, tanto o pomar da brigada como a quinta experimental da comuna estavam a resultar bem do ponto de vista económico... Estudávamos em conjunto durante a noite. Guirong ficou com os livros que eu tinha. Lifeng, que 

«Criticar em profundidade a 'teoria da natureza humana' das classes dos proprietários e capitalistas»
Poster chinês 1971
tinha tido muito pouca instrução, começou a aprender a ler e a escrever. Trazia consigo um pequeno caderno e muitas vezes, quando tinha oportunidade, tirava-o para rever as palavras que nele estavam escritas. Tínhamos partilhado sonhos e aspirações e vivido juntas como eu o teria feito com os meus amigos zhiqing. Mas estávamos todas conscientes, embora não falássemos sobre isso, de que os nossos destinos finais iriam divergir devido ao facto de eu ser da cidade e elas do campo... Deixei Momoge em Janeiro de 1977, com nostalgia e um sentimento de culpa. A quinta experimental foi desmantelada no final de 1977.»

***
Claudie Broyelle visitou a China em 1971, durante a Revolução Cultural, com um grupo de mulheres activistas francesas intrigadas com a árdua e desordenada luta pela libertação das mulheres na China. Elas ouviram muitas histórias de mulheres sobre a forma como tinham saído dos papéis tradicionais que as mulheres representavam em casa e como portadoras de crianças, para aprenderem a ler, a lutar com as ideias intelectuais e a desempenhar o seu pleno papel na transformação da sociedade. No seu livro Women’s Liberation in China [A Libertação da Mulher na China] (Harvester Press, 1977), ela escreveu sobre o que, em conjunto com outras mulheres, viveu nos campos de Chao Yan:

«Dentro da fábrica havia um sentimento de solidariedade, dinamismo e dedicação. Era muito comum ver mulheres trabalhadoras a ficar depois do seu trabalho diário para terminarem uma tarefa ou praticarem uma técnica difícil. Claro que não éramos forçadas a fazê-lo e não éramos pagas pelas horas extraordinárias. Será que temos que receber bónus por estarmos a fazer a revolução? É isto a sua essência. Além disso, a nossa experiência não agradou de forma nenhuma a toda a gente. Em 1961, alguns dos gerentes da fábrica, completamente cegos pelas ordens do conselho municipal de Pequim, decidiram ‘racionalizar’ a produção. Decretaram que havia demasiada gente a trabalhar ali e que teríamos que deixar de fazer chaleiras uma vez que agora éramos uma fábrica de equipamento médico. Quão desdenhosos eram eles das nossas chaleiras! A ‘reorganização’ teria implicado que um grande número de nós fosse para casa. Eles pensavam que nos iam convencer dizendo que os homens iam obter um aumento salarial para que nós pudéssemos ficar em casa e cuidar das nossas famílias. Será que dessa forma não seria tudo mais simples? Mas esses planos tiveram uma vigorosa resistência da parte das mulheres, e elas declararam: ‘Não vamos voltar para a cozinha, não vamos sair do nosso trabalho!’ A vida na fábrica tornou-se muito tensa. Houve uma luta desesperada entre essa facção da administração que queria gerir a fábrica com vista ao lucro imediato e que, acima de tudo, não queria que as mulheres trabalhadoras se libertassem, e a grande maioria das mulheres trabalhadoras que queriam continuar no caminho que tinham escolhido.»
«Mulher condutora de tractor»
Poster chinês 1964


«Essa luta foi levada a cabo com uma completa consciência do que estava em causa. Nós compreendíamos o que estava em jogo. Na maioria dos casos, os nossos maridos e os outros homens apoiavam-nos. Isto pode-se explicar facilmente. O que aconteceu em Chao Yan não foi um incidente isolado. Em todas as fábricas, uma ofensiva reaccionária organizada por Liu Shao-chi visou quer a reintrodução das normas capitalistas de produção, quer impedir o seu derrube pelas massas. Isto explica porque é que os homens, que também estavam a ter que se opor à ofensiva burguesa, compreenderam e em geral apoiaram a resistência das mulheres. Como muitas de nós estávamos sem trabalho, não recebíamos nenhuma remuneração. Mas isso não tinha importância. Se não tínhamos trabalho, criávamos algo para nós mesmas! Se não recebíamos nenhum salário, aguentar-nos-íamos ajudando-nos umas às outras! Pedimos a outras fábricas que nos dessem trabalho que nós então fazíamos na ‘nossa fábrica’. Algumas mulheres trabalhadoras trouxeram sobras para a fábrica (tijolos, chapas metálicas e por aí adiante), que nós recuperávamos e limpávamos para as reciclarmos. O trabalho das mulheres era útil, mesmo que não fosse ‘lucrativo’, e nós provámo-lo. Poucas mulheres, apenas cerca de quinze de nós, não conseguiram continuar. Ou foram trabalhar para grandes fábricas ou voltaram para casa. Durante a Revolução Cultural, acabámos por perceber ainda mais claramente a verdadeira natureza dessa política reaccionária. Levámos a cabo campanhas para denunciar o método dessa dita ‘racionalização’.»

«A maioria dos que tinham apoiado a linha de Liu Shao-chi descobriram que interesses tinham estado realmente a servir. Eles estão agora trabalhar connosco ao nosso lado. Quase todas as mulheres que tinham saído da fábrica voltaram a trabalhar aí. Recentemente, as mulheres trabalhadoras desta fábrica aperfeiçoaram um processo para o fabrico de silicone. Antes, as trabalhadoras aqui eram todas antigas donas de casa e geralmente bastante idosas, entre os quarenta e os cinquenta anos. Agora, também temos algumas jovens que saíram da escola e que partilham os seus conhecimentos com as trabalhadoras mais velhas e que, ao mesmo tempo, aprendem com elas as qualidades da persistência revolucionária e da flexibilidade proletária. Neste bairro, virtualmente nenhuma mulher permanece em casa, só as mulheres que são demasiado velhas ou que estão mal de saúde – mas mesmo para elas a vida mudou. Elas ajudam-se umas às outras e fazem algumas tarefas domésticas para ajudarem as que trabalham longe de casa; organizam a vida política e cultural do bairro; não estão tão isoladas como antes. Esta transformação resulta da entrada de milhares de mulheres em actividades produtivas e sociais. Quanto a nós, somos assalariadas e é importante que tenhamos conquistado a nossa independência económica. Mas deve-se perceber que ainda é mais importante para nós mantermos uma posição firme no mundo, preocuparmo-nos com as questões comunitárias em vez de apenas nos preocuparmos com problemas familiares. Temos usado a produção como 

«A nova especialista em explosivos»
Poster pintado por Jin Chen, 1974
arma para nos libertarmos, para servirmos melhor o povo chinês e a revolução mundial.»
A actual situação das mulheres, seja nas sociedades capitalistas desenvolvidas, seja no terceiro mundo, continua a basear-se na opressão e assume diferentes formas em diferentes lugares. O capitalismo apenas actualizou essa opressão com formas modernas, através da sobreexploração numa economia globalizada onde há mulheres que ganham 2 dólares por dia em fábricas espalhadas pelos quatro cantos do globo. As mulheres continuam a ser violadas, mortas e transformadas em troféus de guerra. A escravização sexual de mulheres e crianças tornou-se um fenómeno mundial. E em todo o lado as mulheres são avaliadas em função da sua utilidade para os homens enquanto mães, esposas e para satisfação sexual. A libertação das mulheres só pode ser alcançada através de uma transformação revolucionária do mundo e de toda a humanidade, sendo a emancipação das mulheres uma pedra angular dessa emancipação.

Notas sobre corrupção, legitimidade do Estado e farsa eleitoral




Nossa nação saiu recentemente de mais um “show da democracia”: as eleições municipais. Buscaremos expor algumas reflexões sobre o tema.


A inerência da corrupção

“Uma vez [e somente aí!] desaparecidas as diferenças de classe ao longo do desenvolvimento e estando concentrada toda a produção nas mãos dos indivíduos associados, então o poder público perde o caráter político”
Marx


O modelo de Estado brasileiro, proveniente de um longo processo colonial e de subordinação às elites estrangeiras vinculadas com as locais, é caracterizado por uma forte tendência corruptiva seja nos níveis mais elementares e locais, até mesmo nas altas esferas. Esse traço não é consequência de uma natureza humana ou tupiniquim, imutável, cujas supostas provas são inúmeras. Na verdade, como dito, tem sua funcionalidade, quer seja, garantir a reprodução de uma formação social subornada aos interesses das classes dominantes locais em consonância com as necessidades do sistema econômico global hegemônico no momento, o imperialismo.

A corrupção zomba do conceito e pretensão da esfera pública, surgida somente com a sociedade burguesa. Vale ressaltar que a esfera pública pura, como quer a ideologia burguesa ou pequeno-burguesa (com seus protestos moralistas anti-corrupção) é uma ilusão, já que a organização estatal e social, e sua administração, diz sempre respeito a interesses objetivos econômicos, de classes, e não da sociedade como um todo. Porém, sua efetividade e tamanho são variáveis. Há países capitalistas com esfera pública e política mais representativa e efetiva, outros menos etc. O fato é que a corrupção é persistente, e como um fantasma de outras épocas não-liberais, coloca a esfera pública como serviçal dos interesses privados. E no Brasil, ganha ares assombrosamente cínicos.


Legitimidade do Estado e a farsa eleitoral

Se a corrupção é peça integrante da máquina estatal, podemos questionar o quanto isso afeta a legitimidade (e a falsidade desta) do status quo.

Nas sociedades democráticas, de Estado de Direito, as eleições e respeitos as normas legais são tidas como termômetros do nível de legitimidade do Estado. Se estas são respeitadas e consideradas, eis a prova quantitativa (democrática) de que o status quo é legitimo. E o contrário também é verdadeiro. Mas a eleição seria um bom critério para revelar a legitimidade de um modelo econômico-político? Os reformistas, os maiores interessados na conservação da mamata da máquina “pública”, acreditam que sim. Como diz Lenin em Estado e Revolução, eles “partilham e fazem o povo partilhar da falsa concepção de que o sufrágio universal, no Estado atual, seja capaz de manifestar verdadeiramente e impor a vontade da maioria dos trabalhadores”.

Ora, a corrupção, mais propriamente a troca de favores se utilizando da esfera pública como moeda de troca, não poderia facilmente falsear (ou melhor, corromper) essa prova? E não é essa uma realidade gritante no nosso país, dos clientelismos, assistencialismos patrimonialismos, coronelismos e afins?

Logicamente, os favorecidos pela corrupção vão legitimar e mobilizar “consideração” ao Estado, não como fim em si mesmo, por acharem que influenciam significativamente as escolhas políticas (democracia), mas como meio de continuar sua posição “privilegiada”. Um exemplo são os cargos indicados pela sociedade política, o mar de contratações “partidárias” que inundam todas as esferas da federação. Uma burocracia mais ou menos estável se forma, e esta precisa forçar a simulação de legitimidade para a perpetuação de sua condição.

Antes de pensarmos de maneira moralista, é importante perceber o quão útil e necessário (para o sistema) essa prática é em nossos tempos - o nos outros também, onde houver regime de dominação. E com os constantes cortes na esfera pública propriamente dita, o desemprego estrutural etc., se utilizar da troca de favores é uma forma de sobrevivência, um jeito de “ganhar a vida”, para uma parte considerável da população, que não se encaixa verdadeiramente na burocracia estatal, mas barganha por pequenos e médios assalariamentos ou negócios. Esse jeitinho não é "brasileiro", mas sim efeito de uma formação brutalmente desigual, onde técnicas de sobrevivência e "cordialidade" frente às normas para a aquisição de níveis mínimos de vida se estruturaram por vários setores populares.

Entendamos de vez o circo democrático de legitimação que são as eleições: quanto mais pessoas (físicas e jurídicas) dependerem dos “favores”, maior será a farsa, mais simulacro gera. Eis a face econômica e política que surge determinando em última instância os processos ditos puramente "técnicos" e judiciais.

Então, é preciso desmascarar a farsa eleitoral para além do elogio ao boicote/abstenções (que inclui também apoliticismo e situações circunstanciais). Mas também como um jogo extremamente corrupto, inclusive pelo poder manipulador da propaganda e do dinheiro para a mesma, em que boa parte do povo participa não por acreditar no Estado atual, mas por depender de uma ou outra migalha da esfera pública comandada por caciques que mais se assemelham a diretores de um teatro dos horrores, ou de um mercado macabro de siglas-fantoches. Ou mesmo por não ver outra opção no horizonte. 

E como dizia Lenin, a massa só aprende pela experiência própria, com várias e duras lições ao longo do tempo, coordenada e sistematizando suas vitórias e derrotas. Não há outro remédio.

O alto preço pago pelo Estado (ou mesmo pelos “movimentos sociais” reformistas, como a falida UNE, correndo atrás de jovens incautos para votarem) em propagandas que beiram ao ridículo para convencer o povo dos prestígios de exercer sua cidadania, já é um indício de luta de classes: quando a movimentação do outro lado é grande, é porque há preocupação, e o lado de cá não parece tão acomodado quanto parece. Que os reformistas continuem sua lengalenga e roubalheira: seus dias estão cada vez mais contados assim. Mal sabem eles que o povo há muito desiludido (para a pequena-burguesia perdida, um bando de "alienados") pouco se importa com as fachadas criadas por eles, e podem muito bem sair do jogo quando uma verdadeira alternativa lhe for dada.